Realizou-se no dia 8 de Julho a segunda gala organizada por uma fundação sem fins lucrativos – a Mirpuri Foundation – que, apesar de actuar num número muito significativo de áreas e países, pouca gente conhecerá em Portugal. O primeiro evento realizado no Teatro Nacional de São Carlos – a troco de apoio mecenático, como se pode ler no opulento programa – foi antes da pandemia, em Novembro de 2018, também para uma plateia restrita e selecionadíssima. Agora em 2022 nela sentaram-se ministros, ex-ministros, secretários de estado e outros políticos e, mesmo, o candidato ao trono de Portugal. Para além, naturalmente, dos convidados da família Mirpuri oriundos de mais de 50 países. Talvez por isso, a gala que foi mais uma vez apresentada por Catarina Furtado na língua de Camões, teve Diogo Infante a “dobrar” a apresentadora, no idioma de Shakespeare, pelo que durou quatro longas horas.
Se para o primeiro evento se escolheram três figuras das nossas artes para dar nome aos prémios de Dança, Música e Teatro – respectivamente a italo-portuguesa Anna Mascolo, o pianista Sequeira Costa e o encenador Carlos Avilez (este ainda vivo) – tudo levaria a crer que as galas se concentrariam nas artes teatrais. Este ano, curiosamente, verificou-se uma baixa naquele trio e o nome de conhecido pianista e professor que terminou a sua carreira nos Estados Unidos da América, foi substituído por alguém que, por sinal, teve um papel determinante durante décadas na gestão do Ballet Gulbenkian e organizou vários encontros de música contemporânea e festivais, entre muitas outras actividades ligadas à Fundação Gulbenkian onde foi director adjunto do Serviço de Música, mas que nunca foi um artista avant la lettre, Carlos Pontes Leça.
Apesar da música ter tido a “parte de leão” na gala, com a memorável prestação de duas figuras maiores do canto lírico mundial, o tenor peruano Juan Diego Flórez e o soprano russo Aida Garifullina, acompanhados pela orquestra e coro do São Carlos sob a batuta do seu maestro titular António Pirolli, foi a dança que arrecadou mais prémios: o de “revelação” para o jovem leiriense e presentemente solista no Ballet Estadual de Munique, António Casalinho; o prémio Anna Mascolo para a antiga primeira bailarina do Ballet Gulbenkian, directora do projecto Compota e criadora e divulgadora nas áreas do movimento e da performance, Paula Pinto, e o prémio “carreira e prestígio” para outro nome de peso ligado à extinta companhia da Gulbenkian, co-fundador da Companhia Nacional de Bailado, coreógrafo, cenógrafo e figurinista, Armando Jorge.

Os galardões para a música foram para Martim Sousa Tavares e o maestro António Victorino de Almeida (carreira e prestígio) e os do teatro para Luís Moreira e Maria do Céu Guerra (carreira e prestígio). Quando a noite já ia longa o cientista sérvio Vladan Petrovic subiu ao palco para receber, das mãos da ministra Elvira Fortunato, o “prémio ciência e inovação” e a filha do norueguês Johan Galtung (em sua representação) levou consigo o “prémio da paz”.
O espectáculo, propriamente dito, começou com uma interpretação da Orquestra Sinfónica Portuguesa da popular Dança das Horas da ópera La Gioconda, de Amilcare Ponchielli, seguida por uma curta variação do pas-de-deux Diana e Acteon, de Agrippina Vaganova, por António Casalinho. Sem o fulgor a que tem habituado os seus muitos admiradores – a inclinação do palco do São Carlos é madrasta para quem não tem tempo para centrar as piruetas e ganhar confiança e à vontade num espaço de acústica imaculada muito mais apropriado ao canto que à dança clássica – ainda assim o extraordinário artista dançou com a sua habitual jovialidade, verve e aplomb.
A conhecida ballerina ucraniana Iana Salenko acompanhada do seu marido Marian Walter, ambos vindos do Ballet Estadual de Berlim, abalançou-se para o difícil Grand Pas Classique (com coreografia de Victor Gsovski) tendo denotado alguma tensão, sobretudo nas partes em dueto. Certamente pelas razões atrás apontadas, ela que é uma das bailarinas mais populares e carismáticas actualmente a dançar na Europa, executou quase sem mácula a sua difícil variação, mas o par poderia certamente ter mostrado muito mais virtuosismo num outro palco. Como por exemplo o do Teatro Camões, o da Fundação Gulbenkian ou o do Centro Cultural de Belém.
Seguiu-se a muito esperada apresentação de outra enorme ballerina, a russa Natalia Osipova, que também terá feito a sua estreia no nosso país. Mais tranquila, mas ainda assim visivelmente preocupada e lutando contra a força da gravidade, dançou o Grand pas-de-deux do bailado A Bela Adormecida, ao lado do escocês Reece Clarke, também primeiro bailarino do Ballet Real de Inglaterra, em Londres. Curiosamente, este teve, na opinião de alguns, a melhor prestação dos cinco artistas de dança convidados para a primeira parte, com uma segurança, charme, serenidade e sentido espacial e artístico, dignos de nota. Pena foi que Osipova, considerada por muitos a melhor Giselle da actualidade, não tivesse optado por uma peça romântica ou de demi-caractère (do género Coppélia) em que pudesse mostrar o seu lado mais emocional e o seu incrível e notável ballon (amplitude saltatória).
Antes do intervalo ainda se ouviram três peças extremamente populares: Flórez cantou com grande sentimento a ária Una furtiva lacrima (da ópera O Elixir do amor de Gaetano Donizetti), Garifullina interpretou a tão dramática como difícil Casta Diva (da Norma, de Vincenzo Bellini), terminando o coro do São Carlos com a monumental Va’pensiero (de Giuseppe Verdi).
A segunda parte não podia ter aberto de melhor maneira com a estonteante diva russa a cantar É strano… Sempre libera, de La Traviata (de Verdi). Seguiu-se uma canção bem querida de todos os tenores-estrela, Torna a Surriento (de Ernesto de Curtis), em que Flórez não deixou os seus créditos por mãos alheias, a Mattinata, de Ruggero Leoncavallo – por Garifullina – e Nessun Dorma, da Turandot de Giacomo Puccini, na voz de Flórez. Antes do grand finale, com o sempre borbulhante Brindisi de La Traviata ao lado de Garifulli na e do coro do São Carlos, o “amável” tenor de guitarra no colo mostrou generosidade para com os espectadores e amor pelas suas raízes latino-americanas num “extra” com a popular canção mexicana Cucurucucú Paloma, de Tomás Méndez. Uma vez mais, com muito sentimento, belíssimo fraseado e
uma portentosa técnica vocal que tocam a perfeição, levantou das poltronas o público presente no nosso primeiro teatro e que mostrou particular apego a este tipo de galas cheias de fogo-de-artifício artístico.
Com ou sem prémio para a Paz no seu epílogo, este evento – infelizmente acessível apenas a um grupo de sortudos – evidenciou uma enorme qualidade ao emanar uma fortíssima mensagem que, desde logo, ultrapassou as paredes do vetusto São Carlos. Por nela se terem juntado na “foto de família” duas das maiores artistas russas e ucranianas vivas, Osipova e Salenko.Tal revelou que, ao contrário da inconcebível barbárie com origem no Kremelin com destino à Ucrânia, o mundo das Artes ainda pode ser cego no que toca à baixa política e imune aos negócios sujos, ao mostrar o que verdadeiramente existe de melhor no coração dos homens e mulheres íntegras e de boa vontade.
António Laginha (texto e fotos)