“POROROCA” DE LIA RODRIGUES – DA FAVELA PARA SERRALVES E CULTURGEST

A coreógrafa Lia Rodrigues, que tem feito um percurso como muitos outros artistas brasileiros ligados a companhias europeias, abraçou em exclusivo, na sua última criação, “Porocoa”, a técnica de improvisação de contacto.
Longe vão os tempos em que, saída da companhia da espanhola Maguy Marin, o seu pequeno grupo apresentava peças com um certo cunho brasileiro mas ainda enfeudadas a uma determinada estética europeia.
Hoje trabalhando também junto de habitantes de favelas, o material humano é diverso e, a avaliar pela amostra que trouxe a Serralves e à Culturgest, mais solto e desvinculado.

“Pororoca”, nome indígena para um fenómeno aquático que acontece com ímpeto pelo rio Amazonas adentro, apresenta-se como uma metáfora para um qualquer encontro de águas – ou de indivíduos – com maior ou menor violência.
A peça funciona tanto como uma obra “de resíduos” – nos adereços utilizados que parecem roubados ao lixo e que se espalham pelo palco nu -, como de “tarefas”, na sua construção.
A aposta de Lia Rodrigues em descartar qualquer tipo de música é audaciosa já que os sons em presença se resumem a uns grunhidos animalescos, saídos das gargantas dos onze bailarinos-criadores. Não existindo “música de suporte”, os 50 minutos da peça situam-se mesmo à tangente no que toca a uma certa dispersão mental do público provocada por um material bem organizado, mas não coreografado, em que as referências de memória são inexistentes devido à acumulação de material coreográfico sempre novo, solto, desarticulado, espasmódico e de difícil retenção.
Mas isso não retira mérito aos artistas que dão tudo o que têm (a nível de energia e resistência e habilidade para resolver, de imediato, os problemas levantados pelos próprios e pelos colegas) e mais não se lhes pode pedir!

Apesar de alguns clichés – sorrisos escancarados para o público, uma tentativa de nudez relativamente envergonhada, uns laivos de violência dispensável, comer em cena para descansar do frenesim em que repetidamente se envolvem – a obra, bastante colorida (os fatos, de ensaio, são de cores vivas) desenrola-se com fluidez. É alegre e muito movimentada terminando com os bailarinos, literalmente, a transbordar do palco e a desaparecer através da plateia.
Mas, muito mais sorte tem a coreógrafa brasileira que os seus colegas portugueses pois, apesar de ter mandado reconstruir um armazém-estúdio num bairro desestruturado e clandestino para sede da sua companhia – que fez vinte anos e, em Novembro, se apresentou no Théâtre de la Ville em Paris – é apoiada por uma das maiores petrolíferas do Mundo. Também o seu festival "Panorama de Dança" sempre tem sido bem apoiado e, certamente, não tem que “mendigar” junto de uma instituição estatal como o caso da nossa Direcção Geral da Artes.
Como no Brasil a dança é um vector cultural de peso, bom material para trabalhar não lhe falta, ao contrário do que se passa no nosso país em que ainda temos mais um problema, o sermos ouvidos pelo Ministério da Cultura.

Published by Antonio Laginha

Autoria e redação

António Laginha, editor e autor da maioria dos textos da RD, escreve como aprendeu antes do pretenso Acordo Ortográfico de 1990, o qual não foi ratificado por todos os países de língua portuguesa.

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