POLLOCK: ACÇÃO, MOVIMENTO e DANÇA – MARIA JOÃO CASTRO

O corpo é implicado na execução da obra de arte, quer seja ela pictórica quer seja de movimento. Jackson Pollock conseguiu unir o momento plástico à dimensão da acção do próprio corpo, estabelecendo as bases duma expressão que ficou conhecida por “action painting”, ou corpo-acção, que faz da tela o seu palco.
O artista plástico Jackson Pollock (1912 – 1956), deu os primeiros passos inserido na tradição da pintura realista mas, depois de entrar em contacto com a arte abstracta da vanguarda europeia, começou a elaborar os seus próprios meios de expressão, renunciado a partir de 1946 aos elementos figurativos nos seus quadros. Pioneiro do expressionismo abstracto, desenvolveu uma técnica pictórica criada por Max Ernst e denominada “dripping”, ou seja, gotejamento. Tal prática consiste no fazer pingar tinta directamente do pincel, ou de latas de tinta perfuradas, sobre a tela – o artista abandona assim o cavalete, passando a colocar as telas (de dimensões gigantescas) no chão e fazendo escorrer tinta em movimentos livres da sua mão. É o gotejamento da tinta a cair sobre a tela que marca o ritmo da criação da obra: “o corpo apenas persegue o gesto e o pintor coloca-se literalmente dentro do quadro”.
Desta luta corpo-a-corpo com a própria pintura resultou uma obra que reflecte “uma grande tensão dos gestos”. O tempo e o espaço conjugam-se para efectivarem um universo pictórico novo, imbuído de um potencial criador revolucionário que influenciará não só os pintores que lhe seguiram como também se repercutirá nas mais diversas criações artísticas, incluindo a própria dança.
Numa esfera vertiginosa de criação, Pollock entregou-se de corpo e alma à sua arte, demolindo os limites impostos pelo cubismo e dando origem a um movimento artístico que ficou conhecido por Expressionismo Abstracto. Este veio a dar credibilidade à pintura americana do pós-guerra. Pollock criou uma pintura que é, literalmente, uma coreografia. Poder-se-á dizer que é o registo da passagem de um corpo sobre a tela com uma propositada noção de ausência do corpo do artista. Esta forma de pintura, inserida num “conceito surrealista de automatismo psíquico”, nasceu a partir duma relação directa do inconsciente com a criatividade e o material pictórico, mostrando-se claramente liberta da linguagem figurativa.
Na pintura, os corpos criam, vivem e vivificam o seu próprio espaço: o dinamismo imprimido às figuras recusa, nesta altura, a estabilidade, e então o corpo gera o seu espaço de acção. Pintores como Pollock vêem a tela como um campo de acção e o que se realiza na tela não é um quadro, mas um acontecimento. E como o próprio escreveu: “a mão, o braço e o corpo do artista não dependem da vontade nem da mente mas são instrumento de uma espécie de furor e euforia, desligados de quaisquer normas de composição e estéticas”. O que significa que é análogo a certos processos de criação coreográfica.
A obra de Pollock expande-se assim numa direcção infinita de variações que nunca se repetem, como cada movimento corporal a interacção com a tela é completa e integral, não sobrando espaço para qualquer dinâmica racional da criação. Na sua produção pictórica existe a crença de que há uma força que comanda o gesto e o gesto pela primeira vez faz-se pintura. Assim, o acto de pintar é uma luta corpo a corpo em que o pintor se encontra, praticamente, dentro da tela. A “performance” sai dela (e não de qualquer acontecimento dito “teatral”), do gesto e do momento em que o pintor se assume de corpo inteiro.
As produções de Jackson Pollock revelam laivos do movimento inerentes à sua técnica: ao “passear-se” sobre a tela e ao deixar gotejar tinta, produz um resultado pictural que é, acima de tudo, fruto da velocidade do seu gesto, da expressão e do movimento que originaram a acção. Assim, no “action painting”, o gesto e a pincelada daí resultante expressam-se mais em si mesmos do que em qualquer outro significado que lhe seja exterior. Como atrás se afirmou, isso assemelha-se à improvisação na dança na sua essência mais intrínseca: o movimento do corpo referencia-se a ele próprio independentemente do significado que lhe queiramos dar. Em ambas as actividades (pictórica e coreográfica), o temperamento e o carácter do artista, revelam-se de imediato sem recurso a canais de decifração racional ou intelectual. O resultado é, por assim dizer, independente das conotações que o público possa formar a partir da sua produção.
O pintor trás o seu corpo (Paul Valéry)
No trabalho de Pollock o corpo faz-se arte através do movimento que dele emana. A dança faz-se arte de igual forma, ainda que usando outros suportes. Porquanto a sua dança nas telas é a análoga à que se produz num palco, ainda que revestida de um invólucro diferente. Na sua produção, o ritmo é múltiplo e é sedutor: “desce em vórtice, até tocar um ponto extremamente vivo e sensível da existência”.
Se coreografar é “descrever as formas”, Pollock coreografa sobre os seus quadros e o resultado não é mais do que a descrição da forma e do movimento do seu corpo sobre estas. Os diferentes entendimentos do corpo no discurso artístico são motivados pela necessidade de estabelecer relações e alargar o campo perceptivo do espectador, propondo o confronto entre os projectos apresentados e a documentação histórica exposta. A arte passa a ser definida também como gesto e não apenas como objecto, implicando um impulso individual, uma presença activa, uma reacção do sujeito, ou seja, pretende-se activar a ampliação da percepção através da experiência do corpo, redescobrindo o ritmo, a dança, o próprio corpo e os sentidos.
A partir da obra do artista, a reflexão sobre a ocupação do espaço e as suas possibilidades, tanto na pintura como na dança, abre-se num variado leque. Nesse sentido, Pollock constituiu um ponto de convergência entre a motricidade e o desígnio artístico: o gesto da sua mão ao pintar sobre a tela, revela um cérebro que o anima e que se repete na acção sem nunca se duplicar no resultado final. Desta viagem decorre a constatação de um corpo enquanto agente de produção pictórica e de um movimento que flui.
Jackson Pollock não está só nesta viagem. Yves Klein junta-se-lhe, trazendo os seus “corpos-pincel” para uma dinâmica idêntica, ainda que fundamentada num conceito próprio. Será o corpo utilizado como pincel pela primeira vez e a partir daí a pintura faz-se acção num acto imprevisível, ainda que haja uma ideia de pintura pois ficam as impressões digitais. Mas esse é tema mais abrangente e ter-se-ia que analisar a recepção de vários aspectos da sua pintura em artistas como Lynda Benglis, Eva Hesse e o referido Yves Kein, entre outros.

Não vemos como um espírito sem corpo pudesse pintar (Merleau-Ponty)
Pollock afirmou que não queria ilustrar sentimentos mas expressá-los, de um modo espontâneo e imediato. A sua pintura é uma arte de expressão dramática como o é a dança contemporânea. O facto do artista trabalhar no chão, dava-lhe a impressão de estar mais próximo da pintura e assim fazer parte dela já que podia andar à sua volta, trabalhar nela a partir de todos os lados e, literalmente “estar dentro”. O bailarino produz-se sobre o palco e aí expressa-se através do movimento mais ou menos espontâneo que não é mais do que uma extensão dele próprio naquele momento.
Em telas como Gótico, de 1944, o artista avançou a partir da ideia de uma bailarina, afirmando que “Les Trois Danseuses”, de Picasso (1925), não lhe saíra da cabeça durante todo o processo”. A evocação de uma figura a dançar em movimento rítmico afirma-se em cada instante, ainda que sob a forma de uma vibração pictórica. Os seus movimentos “de dança” executados durante o processo de criação revelaram-se únicos, recorrendo ao lirismo no seu “bailado”, sempre que necessário, e às suas “transgressões” e às fronteiras convencionais, as quais trouxeram certas regalias à arte contemporânea.
Segundo Pollock, o artista moderno fazia duas coisas: primeiro reflectia as condições do seu tempo usando técnicas novas e pouco vulgares e, segundo, dava uma expressão imediata às suas emoções mais do que apenas ilustrá-las.
Como Martha Graham, Merce Cunningham, Paul Taylor, George Balanchine, Jerome Robbins ou Pina Bausch, que relevaram nas suas obras coreográficas um grau de subjectividade intrínseco – e que as caracteriza como obras maiores da contemporaneidade – a obra de Pollock, mais do que qualquer outro artista, moldou a definição e compreensão da arte na segunda metade do século XX, marcando um elevado grau de subjectividade e desafiando os pontos de vista convencionais sobre o que deve e pode ser uma pintura. Ou uma dança!
O que, verdadeiramente, sobressai nas obras de Pollock é essa dinâmica dançada que enche as suas telas de um ritmo desenfreado. Com um simples olhar se percebe que elas se movimentam no espaço, fazendo parte de uma coreografia pessoal que cada um dançará consoante quiser ou puder.
Esta liberdade incrustada nas tela do artista será porventura a sua marca e simultaneamente aquilo que a liga à arte de Terpsícore, porque na Dança, como na pintura de Pollock, a motricidade transforma-se em arte.
Bibliografia
– Catálogo Jackson Pollock, Keher Verlag Heidelberg, Düsseldorf, 2003
– Catálogo O Lugar do Corpo, elementos para uma cartografia, Paulo Cunha e Silva, Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física, Universidade do Porto, 1995
– A Arte do século XX, Karl Ruhrberg, Taschen, Vol. I, Lisboa, 2005
– Arte Moderna, Giulio Carlo Argan, Companhia das Letras, São Paulo, 2002
– História da Arte Ocidental 1780 – 1980, José-Augusto França, Livros Horizonte, Lisboa, 1987
– No limits, just edges, Jackson Pollock Paintings on paper, Organized by Susan Davidson, Peggy Guggenheim Collection, New York, 2005
– Pollock, Leonhard Emmerling, Tashen, Köln, 2008
Para outras informações aceda a http://www.jacksonpollock.org

Published by Antonio Laginha

Autoria e redação

António Laginha, editor e autor da maioria dos textos da RD, escreve como aprendeu antes do pretenso Acordo Ortográfico de 1990, o qual não foi ratificado por todos os países de língua portuguesa.

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