O título da última obra da coreógrafa brasileira Lia Rodrigues, “Pindorama” (2013) refere-se, segundo a própria, ao nome dado às terras brasileiras antes da chegada dos portugueses a Terras de Vera Cruz. Nada mais apelativo (e comercial) para terminar uma trilogia iniciada com “Pororoca” (2009), que designa uma onda imensa nascida do encontro do oceano com um rio e de “Piracema” (2010), uma contra-corrente, na língua tupi.
Após três obras com a água por inspiração a conhecida criadora que, em França, trabalhou na companhia da franco-espanhola Maguy Marin, já veio dar a entender que, afinal, a coisa pode render um pouco mais e partir, de seguida, para um quarteto.
Esta é, sem grandes dúvidas, a peça menos ortodoxa de todas as de Lia que o público português teve oportunidade de assistir na Culturgest. Desde logo porque é uma espécie de “instalação viva”, concebida para um espaço vazio e não teatral, para não bailarinos – no sentido estrito do termo – sem roupa e desenrola-se, literalmente, no meio do público. Integrada no Festival Alcântara, “Pindorama” desenvolve-se em três partes, primeiro dentro de um rectângulo cercado pelos espectadores e, depois, entre as pessoas que são obrigadas pelos performers a espalharem-se pelo espaço livre da “sala”. O trabalho apresentado em cima do palco (fechado) do Grande Auditório teve três apresentações, todas esgotadas, até porque em cada sessão nem foi permita a entrada a duas centenas de pessoas!
É fácil de ver que os títulos das obras – que começam todos com a mesma letra – funcionam como uma espécie de metáfora para uma artista que após dirigir um festival de sucesso no Rio de Janeiro transferiu o seu trabalho para um “galpão” numa favela mas recebe o apoio da poderosa Petrobras e do Ministério da Cultura do Brasil. De qualquer modo as suas propostas exibem uma enorme frugalidade de meios compensada pelas belas imagens que evocam.
O espectáculo não tem qualquer banda sonora e acontece todo na penumbra começando com Amália Lima que depois de despejar uma garrafa de água por cima de si se deita em cima de um imenso rectângulo de plástico que ocupa o centro do espaço. As suas extremidades são manipuladas por alguns colegas que o vão agitando e obrigam alguns preservativos cheios de água a romperem-se e a jovem molhada a movimentar-se freneticamente, como se tivesse sido apanhada por um remoinho de águas bravas. O resultado é bastante expressivo, num crescendo em que o som do material plástico é ampliado por gritos dos que, parados, furiosamente ondulam a falsa “água” em que Amália parece lutar desesperadamente para se salvar de um afogamento. Na segunda parte, já são cinco os inusitados “náufragos” – dois homens e três mulheres – que se confgundem com as ondas plásticas que ficam maiores. Elas são criadas por oito mãos de cada lado que abrem e fecham o plástico sobre os corpos deslocando-se os que o seguram até ao centro e recuando ciclicamente. A expressividade daqueles corpos que lutam contra a corrente e as (aparentes) forças adversas da natureza é enorme e, apesar de nada de muito novo acontecer, o público fica algum tempo em suspenso. Depois da tempestade vem a bonança e um grupo de onze artistas entra transportando baldes de plástico trasnparente com centenas de bolas de água (preservativos atados) que vão espalhando pelo palco. Os domínios de todos os intervenientes vão, a pouco e pouco, se confundindo e ninguém permanece sentado pois a fragilidade dos limites da água torna-se ameaçadora. O que acontece até ao final da peça é, por demais, previsível com os performers espalhados pelo solo esmagando com os seus corpos contorcidos a maioria das bolhas de água. E assim transformando os espectadores em ilhas móveis numa espécie de charco onde se instada uma certa confusão. Ao perder o seu território e a secura do palco, o público curioso e confuso segue os performers que se deslocam lentamente numa amálgama de corpos rastejantes sem regras nem destino. A obra, que vai, de parte para parte, perdendo o interesse inicial mantém, todavia, uma certa aura de mistério até ao fim.
Estranhamente, “Pindorama”, que encerra alguns aspectos ritualísticos, trouxe à memória uma obra criada dez anos antes e que, apesar de não ter trazido com ela um pingo de água para cena, repercutia no olhar da assistência como as monumentais e avassaladoras cataratas do rio Iguaçu. O seu título era simplesmente “Água” e foi assinada, no Brasil, pela gloriosa Pina Bausch.
Fotos: Sammi Landweer