Perto de quatro meses durou a ‘aventura portuguesa’ dos Ballets Russes, fortemente marcada pelo fracasso, pela inquietação e pelo desânimo, tendo a companhia quase colapsado em Portugal. Uma odisseia que, estranhamente, está ausente de quase todos os livros de História Universal da Dança”, pode ler-se na contracapa da obra.
Em centenas ou milhares de livros que, a nível internacional, já saíram com e sobre a história dos Ballets Russes, a maioria deles nem sequer menciona a passagem da companhia por Portugal. E quando o fazem, invariavelmente resume-se a uma infortunada frase ou parágrafo, ou a uma elusiva nota de rodapé.
De um modo geral, alguns dos maiores especialistas na matéria – designadamente a historiadora e crítica de dança norte-americana Lynn Garafola -, poucos detalhes revelaram nas suas obras sobre a digressão da famosa companhia a terras lusas, tendo “desvalorizado” e, mesmo, “esquecido” um período considerado negro no fulgurante percurso de duas décadas do empresário Sergei Diaghilev.
É de salientar que os aspectos mais inovadores de Os Ballets Russes em Portugal situam-se ao nível da análise da “influência” da companhia que se fez sentir, de imediato, em alguns trabalhos do prolífico e inquieto Almada Negreiros, na vastíssima obra do bailarino e coreógrafo Francis Graça – que em 1940 viria a dar corpo ao Grupo de Bailados Portugueses Verde Gaio -, no reportório do Círculo de Iniciação Coreográfica, de Margarida de Abreu, no dos Grupo Experimental de Ballet e Grupo Gulbenkian de Bailado (ambos percursores do Ballet Gulbenkian) e no da Companhia Nacional de Bailado, fundada há quase 50 anos.
O aturado trabalho agora dado à estampa parte de uma contextualização da própria companhia na sua época, prosseguindo com informação variada sobre o panorama da dança em Portugal no pós-Ballets Russes, o nascimento do bailado profissional português mais ou menos em meados do século XX e o que ficou (até aos dias de hoje em Portugal) do reportório da companhia que se extinguiu em 1929 com a morte prematura do seu mentor, o genial Diaghilev.
Dentro das condições sócio-económicas e, sobretudo, políticas – no contexto de uma guerra que assolava a Europa e já durava havia cerca de três anos e meio – era impossível os Ballets Russes encontrarem em Portugal um terreno propício para se mostrarem com o seu fulgor artístico habitual, tendo Lisboa funcionado como uma espécie de tábua de salvação quando a situação financeira do grupo já era desesperada. A companhia, antes de aportar a Lisboa foi-se exibindo em Espanha, tanto quanto pôde e, depois de uma digressão por apenas duas cidades espanholas (Madrid e Barcelona), Lisboa surgiu como uma proposta – do director do Coliseu – irrecusável.
Depois dos (quatro) meses negros lisboetas, o empreendedor Diaghilev miraculosamente conseguiu uma digressão por 14 localidades espanholas, antes de um grupo completamente destroçado penosamente rumar a terras de França e, finalmente, a um porto seguro chamado Londres.
A viagem a Portugal, à partida, já trazia a marca da tragédia e a revolução de Sidónio Pais – com tiros nos Restauradores, entre o hotel Avenida Palace onde se alojavam e o Coliseu onde iriam dançar – com que a capital portuguesa recebeu os artistas tornou a situação insuportável. Esta experiência tinha tudo para dar errado e, ainda que muito do público da época não se tivesse apercebido da real situação que os artistas encontraram, essa foi a memória que todos levaram na bagagem quando deixaram a Estação do Rossio no dia 28 de Março de 1918.
As pouquíssimas referências em fontes bibliográficas sobre a estada dos BR na capital portuguesa não serão nem fruto de deliberado “apagão” nem de “negligência” grosseira, mas sim de uma certa “tendência” da raça humana. Não só esse, mas muitos mais episódios históricos negativos, tendem a desaparecer dos compêndios de História, sobretudo se se trata de registos das artes do espectáculo. A ausência de referências ao nosso país em trabalhos de pesquisa a nível internacional deve-se ao facto de praticamente não haver fontes históricas sobre o tempo que os Ballets Russes passaram em Portugal e os testemunhos escritos da época serem vagos e invariavelmente amargurados. Em muitos países foram os artistas e, depois, os investigadores autóctones, que foram dando contribuições para o conhecimento acumulativo do percurso da companhia nos diversos territórios que visitou.
Ao contrário, por exemplo, de Espanha, estranhamente, esse interesse/necessidade só surgiu em 2018 no nosso país. A bibliografia portuguesa sobre essa passagem também é ínfima e foram precisos exatos cem anos para que fosse impressa uma primeira edição deste livro e a do Essencial de Maria João Castro (INCM).
A historiografia da dança portuguesa é muito pouco densa – para utilizar uma palavra, digamos, simpática – em relação a países em que as artes teatrais são mais acarinhadas e, por conseguinte, estudadas a fundo. Basta ver que a primeira História da Dança em Portugal, da autoria José Sasportes, saiu em 1970 e que só meio século depois foi publicada uma História do Bailado em Portugal, encomendada pelos CTT.
Na verdade, num país em que tão pouco se trabalha nesta área, creio que a presença dos Ballets Russes em Portugal foi tão ignorada no século XX, como a do Ballet Gulbenkian está a ser ignorada no século XXI. Curiosamente tenho um trabalho de fundo, por publicar, que relata em detalhe a história dessa outra extraordinária companhia que nasceu em 1961, com o nome de Grupo Experimental de Ballet. Essa que foi a maior e mais conhecida companhia portuguesa de dança de todos os tempos e que a Fundação Calouste Gulbenkian inesperadamente extinguiu em 2005.
Tudo leva a crer que se os artistas dos Ballets Russes à chegada tivessem encontrado uma Lisboa solarenga, acolhedora e com boa comida, os ânimos de todos – produtores e consumidores – estariam mais elevados para receber as propostas e inovações “diaghilevianas”. E, apesar de todas as vicissitudes, as coisas teriam corrido bastante melhor. Contudo, a total ausência de sofisticação e cosmopolitismo dos espectadores lisboetas da época, não lhes dava as ferramentas necessárias para colher da célebre companhia mais do que uma impressão epidérmica das obras de arte que lhes estavam a ser oferecidas.
Recordar de Almada – a personagem que antes de depois da passagem de 1917-18, por Lisboa, falou e escreveu sobre os Ballets Russes – é sempre falar do artista polissémico, intuitivo e eternamente “jovem” que a História das Artes Portuguesas tanto estimam e que parece ter sido fadado para não deixar de estar sempre ligado a um determinado tipo de futuro. Almada no final de 1917 tudo fez para honrar a visita dos Ballets Russes, para se entusiasmar com a estadia dos Ballets Russes, para aprender com os artistas dos Ballets Russes e para se inspirar nos Ballets Russes. Mas acabou por ser um meteoro que cruzou a dança portuguesa sem, nunca, ter verdadeiramente feito parte dela. Foi uma chama fátua que se apagou sem sequer ter deixado um rasto de cinza para a posteridade. Provavelmente Almada terá sido a pessoa que melhor percebeu a importância e o impacto da companhia de Diaguilev nos que tiveram a sorte de acorrer ao Coliseu ou ao São Carlos, mas não tendo ele qualquer ligação anterior à dança e posteriormente ao verdadeiro e sólido poder, não pôde desenvolver uma arte que necessitava de maestria e ou fundar uma escola ou companhia de bailado que prolongassem no tempo a magia da dança académico-clássica ou da despontante dança modernista.
Sabe-se que Espanha, na época, estava muito viva no imaginário de Diaghilev, desde logo pela ligação que tinha a Picasso e a outros artistas espanhóis e que o rei de Espanha, Afonso XIII, era mecenas e apoiante da companhia. O facto do empresário ter encontrado em Massine interesse pelo flamenco – que anos mais tarde, em 1921 e 22, iria despertar particular entusiasmo em García Lorca e Manuel de Falla – fez com que a sua vida privada se misturasse e também desse força a esse projecto.
De Portugal, infelizmente para o país, Diaghilev não tinha amigos que lhe apresentassem a nossa cultura nem a dança portuguesa tinha um produto tão apetecível (e então de moda) como o “cante jondo”. Em Lisboa os Ballets Russes apenas terão encontrado um entusiasta Almada que terá proposto a Diaghilev o enredo e os figurinos para um bailado sobre os amores de Pedro e Inês. Apesar das nossas danças folclóricas serem bastante variadas não seria expectável haver exemplos ou uma qualquer mostra na capital, ou encontrar nelas a força das danças russas ou a espessura dramática da “alma cigana” que o flamenco encerra.
Falar de companhias portuguesas, no século XX, é falar de grupos que ao mesmo tempo que se foram formando foram-se extinguindo. Esse parece ser o triste destino no qual a dança portuguesa tem vindo a perdurar. Desde o grupo pioneiro de Margarida de Abreu até à Companhia Nacional de Bailado – a única instituição terpsícoreana de peso que sobreviveu ao século XX em Portugal – se foi tentando manter viva (com maior ou menor qualidade) a semente de Diaghilev. Apesar de tal não ser fácil, devido ao custo e à qualidade artística que tal exige, a Fundação Gulbenkian, com os excelentes meios que Madalena Perdigão alocou ao bailado, conseguiu alguns “milagres”, desde logo o extraordinário bailado Petrushka, que Lisboa pôde ver nos anos 1970 em nada menos que três remontagens.
Não havendo em Portugal tradição de documentar a dança nem arquivos de instituições públicas ou privadas acessíveis e confiáveis – como há, por exemplo, nos Estados Unidos da América – trabalhar com o passado é quase como “tirar leite das pedras”. Qualquer obra relativa à História da Dança Portuguesa é sempre morosa – porque as fontes, por vezes, são reduzidas e até apenas orais e estão dispersas – e muito artesanal porque não existe quase nenhuma literatura e a própria massa crítica é frequentemente pouco confiável. Para lidar com este tipo de trabalho é, desde logo, necessária muita integridade e conhecimentos sólidos, argúcia e dedicação.
De um modo geral é insensato afirmar que uma qualquer investigação está completa mas, depois das pesquisas da investigadora Maria João Castro e do meu trabalho (complementar) a nível de levantamento artístico e análise dos dados e de conhecimentos práticos em Portugal e no estrangeiros, atrever-me-ia a acreditar que dificilmente novos dados ainda venham a ser revelados nesta matéria.
A obra – que já vai na terceira edição – foi sendo actualizada com um ou outro detalhe que foi surgindo e tem 134 páginas, com muitas imagens e ilustrações inéditas.
O índice dos Ballets Russes em Portugal estrutura-se da seguinte forma:
Apresentação
Prefácio
Cap. 1 – Diaghilev: o homem, o artista e o empresário
Cap. 2 – Uma companhia “russa” de Paris para o Mundo
Cap. 3 – Almada Negreiros e os Ballets Russes
Cap. 4 – Entre a inquietação e o desânimo
Cap. 5 – A criação do Grupo de Bailados Portugueses Verde Gaio
Cap. 6 – O legado dos Ballets Russes às companhias portuguesas
Cap. 7 – O epílogo duma aventura
Posfácio, Quadros e Bibliografia
António Laginha