Na breve história da Companhia Nacional de Bailado (CNB) houve, em tempos, um coreógrafo que se julgava o próprio Balanchine; um outro que, nos seus mais delirantes sonhos, imaginava que era Marius Petipa e um terceiro que muito tentou ser o Kylián português. Para compor o ramalhete, nos anos que correm, só faltava a reincarnação da defunta Bausch. Fenómeno vulgar em todo o Mundo. E assim se completa um quarteto de onde saíram algumas propostas pontuais com interesse mas nunca um verdadeiro corpo de trabalhos que constituísse um acervo de irrepreensível qualidade na companhia e, muito menos, um reportório nacional digno desse nome! Talvez buscando em coreógrafos tão esquecidos como Carlos Trincheiras ou Águeda Sena se encontre um pouco mais de alma portuguesa… e menos de efeito de moda.
E, entre outras coisas, é por isso que a CNB está na confrangedora posição em que está, descaracterizada, sem respeito pelo lugar que deve ocupar no país e, sobretudo, sem rumo! O que, desejavelmente, poderá não está assim tão longe de ter um fim à vista…
A presente temporada tem sido pouco mais que decepcionante e a nova criação de Olga Roriz, “Noite de Ronda”, muito pouco ou nada de novo (ou estimulante) trouxe ao Teatro Camões e, sobretudo, aos artistas e técnicos da CNB. A antiga coreógrafa do Ballet Gulbenkina tem uma boa – e fiel – legião de fãs que a segue e aplaude incondicionalmente. Todavia esse tipo de estatuto para um artista pode ser enganador, pois, em termos práticos, alimenta egos e mascara fragilidades.
A autora de “Pedro e Inês”, a nível de ténue retrospectiva, fica sempre aquém das expectativas quando opta por bailados opacos em que o fio de narrativa não passa de um somatório de quadros compostos por… encenadas banalidades. Em “Noite de Ronda”, apesar de um enorme, caríssimo e pesado aparato cénico constituído por andaimes, cortinas e escadas metálicas, da autoria de Pedro Santiago Cal, os figurinos são o “clássico” bauschiano – mulheres de vestidos de cerimónia e homens de fato – e a selecção musical menos “melancólica” e mais agressiva que o normal em Roriz . Os movimentos e os gestos são o esperado numa peça em que as mulheres, supostamente frágeis e sofridas, parecem saídas de um anúncio de champô, e os homens tentando impor uma aura de dominadores e machos, cumprem umas rotinas aeróbicas em jeito de competição ou de triviais manobras de… discoteca.
A coreografia de “Noite de Ronda”, a determinada altura, deixa no espectador mais atento, a impressão de que estamos perante uma peça análoga a muito jornalismo da actualidade que visa, pouco mais que, encher páginas para justificar a secção dos anúncios, ou de social! Até chegar à voz da carismática Rocio Jurado na sentimental canção de Augustin Lara que dá o nome à peça, há revoadas e revoadas de corpos que se atiram para o ar ou se abandonam ao solo numa espécie de forçada história entre eles. Na verdade, Pina Bausch afirmava recorrentemente que não lhe interessava muito como é que os seus bailarinos se mexiam mas, sim, o que os fazia mexer. E este é o dilema mais premente desta “Noite de Ronda” em que 32 bailarinos raramente apontam para o que os faz, realmente, levantar da cama para ensaiar cada manhã e se exibir à noite.
Do ponto de vista criativo a peça, de pouco mais de uma hora, perde-se por lugares comuns (homem- beija-mulher-mulher-dá-estalos-a-homem) e, mesmo, por cenas gratuitas com os homens a descer as calças para mostrar o traseiro e as mulheres, de um modo desnecessário, a mostrar as mamas. Se era para dar um pouco de “erotismo” a um trabalho que, apesar destes truques, se revela quase todo seco como um pau, a tentativa de desnudar os troncos do elenco feminino e, seguidamente, tentar tapá-los com as mãos, não terá sido a melhor das opções dramatúrgicas.
A “multidão” de bailarinos, alguns já habituados aos textos coreográficos de Roriz – mas nem sempre entrosados num tipo de coreografia que não se compadece com imaturidade vivencial ou falta de profundo envolvimento e, até, um pouco de saudável loucura – fez o que pôde (e o melhor que sabe fazer) remetendo-se para um forçado anonimado. Certamente imposto pelos grandes conjuntos que impressionam em número de cabeças e em quantidade de movimento, mas não convencem no detalhe, na representação teatral e nem na inventiva coreográfica.
Quem quiser aferir comparações, em termos da estética da chamada dança-teatro, nesta altura, é fácil. Estão nos cinemas lisboetas nada menos que duas películas sobre a vida e obra da diva de Wuppertal: "Sonhos de Dança nos Passos de Pina Bausch", de Anne Linsel e Rainer Hoffmann, e "Pina" – em 3D – de Wim Wenders. A juntar-se a estes documentários há ainda o inevitável "Lissabon Wuppertal Lisboa" (1998), do nosso compatriota Fernando Lopes. Todos, seguramente, de qualidade superior…