Muitas pessoas questionam-se se, numa altura em que rebentou uma feroz guerra em território ucraniano, como alerta e retaliação, se se justifica boicotar os artistas russos dos palcos de todo o mundo?
A resposta não será totalmente consensual mas, ainda assim, existe uma base – ou linha vermelha – de que não deveremos nos afastar.
Tal como assinala a mensagem emanada da UNESCO (Paris) para o próximo Dia Mundial da Dança (DMD) – 29 de Abril – muitas pessoas, actualmente, lutam na Ucrânia em resposta a uma guerra intolerável e devastadora imposta por um ditador impiedoso, sanguinário e que não tem qualquer respeito por uma nação independente, nem limites para o sofrimento alheio. A Dança, depois de ter sido severamente atingida pela pandemia foi, agora, também ferida por um conflito armado que poderá atingir uma escala inimaginável. Estamos, pois, perante duas verdadeiras tragédias. E o que se aplica à “arte da musa Terpsícore”, pode e deve aplicar-se, ipsis verbis, a todas as outras Artes.
Porém, não se devem confundir os artistas – fazedores de toda e qualquer arte – com os políticos. O que, aliás, é uma combinação que nunca resultou, nomeadamente no nosso País. E exemplos dessa nefasta promiscuidade não têm faltado nos anos mais recentes.
A arte, pela sua intrínseca natureza, deve estar sempre acima de qualquer regime. Já os regimes devem evitar a tentação de se imporem como (bons) mecenas apenas para colher dividendos.
Embora nunca se deva exigir dos artistas que sejam apolíticos, a sua arte jamais deve estar refém de decisões burocráticas vindas de cima que possam cercear a sua criatividade. E, muito menos, o seu desejável desenvolvimento intelectual e artístico. Tal é inaceitável e, mesmo, repugnante em qualquer nação. Designadamente nas ditas civilizadas, livres e democráticas.
Assim sendo, e por maior respeito e admiração que se tenha, por exemplo, por uma grande bailarina ucraniana, como Iana Salenko, não devia passar pela cabeça de alguém minimamente ponderado recusar assistir a um espectáculo da russa Natália Osipova, uma das maiores bailarinas da actualidade. Curiosamente, a primeira apresenta-se regularmente no Ballet Estatal de Berlim e a segunda no Ballet Real de Londres. Onde, acrescente-se, é adorada. Também é tido por garantido que o trabalho de ambas vale por si, independentemente do local e da companhia em que se apresentem. A sua arte está acima de qualquer suspeita e a sua postura tem sido irrepreensível relativamente a cada um dos lados da (actual) barricada. Não poderei, também, deixar de trazer à colação o exemplo de uma outra conhecida ballerina, a internacional russa Olga Smirnova, que em manifesto repúdio pela escalada de terror e morte imposta pelo presidente da Rússia ao povo irmão, se demitiu recentemente (e com grande impacto mediático) do Ballet Bolchoi, tendo se mudado para Amsterdão, para encabeçar o elenco do Ballet Nacional da Holanda.
Já a situação de um outro russo, Igor Zelenski, antigo primeiro bailarino do Ballet do Teatro Maryinski (de São Peterburgo) e do New York City Ballet (de Nova Iorque) que até há pouco foi director do Ballet da Ópera Estatal da Baviera, em Munique, é diversa. Devido a alegadas ligações perigosas com a ditadura russa, optou – não se sabe quão voluntariamente – por um caminho antagónico, deixando o seu cargo na Alemanha e rumando para lugar incerto.
Mas parece evidente que punir artistas vivos (e censurar até mortos, desaparecidos alguns já há séculos) não pode ser uma postura aceitável só porque, neste momento, eles não se distanciam liminarmente de Putin. A “caça às bruxas” não deve ser uma prática aceite e uma nova Inquisição não deve voltar dos confins das trevas. Já outra coisa é boicotar aqueles que, abertamente, continuam a apoiar um regime autoritário e que tudo arrasta, incluindo artistas e artes. A discriminação pode e até deve ser feita relativamente a posturas cívicas e profissionais e a ideias politicas que colidam com a vida e a dignidade dos povos, mas nunca tendo a ver meramente com a localização geográfica do nascimento ou a cor do passaporte de um indivíduo que faz das artes a sua profissão.
Tal como termina a citada mensagem do DMD: o momento é de ações concretas e resultados tangíveis, pois este é tempo para nos unirmos para avançarmos juntos. Com ponderação, já se vê. E, sobretudo, com justiça e firmeza e muito amor e o maior dos respeitos por todos os verdadeiros, íntegros e coerentes fazedores de Arte que, em qualquer parte do Mundo, muitas vezes lutam um dia, um ano ou toda a vida, para ver o seu trabalho reconhecido e apreciado.
E em relação a artistas tidos como apoiantes do regime de Putin desde há muito?
A expressão “há muito”, por vezes, pode ser quase tão relativa como “há pouco”. E é, provavelmente, entre essas duas balizas temporais que devemos enquadrar as simpatias de artistas que continuaram “amigos” do regime russo ou apoiantes do seu presidente, após Putin ter espalhado o pânico dentro e fora das fronteiras da pátria de Tchaikovski, Tolstoi, Chagall, Chaliapine e Nureyev. Mais acentuadamente desde 2014, data da mortífera e abusiva invasão da Crimeia.
É certo que as ambições imperialistas do antigo patrão do FSB e do KGB, que dirige com mão de ferro os destinos da Rússia, têm fomentado o aparecimento de muitos opositores. Designadamente artistas a manifestarem-se em público – o que, como sabemos, é altamente perigoso num país fascista – contra toda a espécie de arbitrariedades perpetradas pelo Kremlin. O exemplo mais divulgado (na área artística) é o audaz grupo punk rock feminista moscovita Pussy Riot.
Mas o mal-estar na comunidade artística russa, decorrente de políticas desumanas, autoritárias e expansionistas, há muito que é bem visível, transbordando, mesmo, para fora das fronteiras do imenso país. Muitos ainda estão lembrados do impensável e horrendo crime perpetrado por um bailarino estrela do Bolchoi (grande) Ballet que mandou atirar ácido para o rosto do director artístico da famosa companhia. O delito, que chocou o mundo do bailado, e não só, foi bem revelador de tudo o que está podre na comunidade artística russa na era Putin, a qual já leva mais de duas décadas.
Assim, se o actual regime protege artistas que se “encostaram” – e em todos os países há os ditos artistas de regime, mais ou menos óbvios – ou apoiam abertamente Putin, e a sua consciência não lhes pesa, o caminho a seguir deverá ser o regresso à sua pátria. Não se sujeitando, pois, à humilhação de verem as suas carreiras interrompidas em países que politicamente não suportam a ideia de estar a sofrer as consequências de uma guerra medonha – com toda a solidariedade para com o país mártir – em que a Arte já nem consegue sequer funcionar como um ligeiro lenitivo.
Qual tem sido a postura de Portugal relativamente a esta sensível problemática?
Não parece que Portugal tenha tomado qualquer atitude ou sido particularmente incisivo relativamente a uma exclusão liminar de artistas russos dos seus palcos, na sequência do actual conflito bélico russo-ucraniano.
Que se saiba tal não foi, alguma vez, noticiado.
Também não se ouviu sublinhar um oportuno e positivo acolhimento de algum artista ucraniano de topo em fuga, em alguma das nossas companhias.
Apenas terá chegado a jovem Alina Petrenko, um dos mais de duzentos refugiados que chegaram a Lisboa no dia 10 de Março. Se não fosse a guerra – segundo noticiou a CNN – ela estaria a dançar na China, depois de ter passado pela Coreia do Sul, a fazer trabalhos comerciais no resort Sumsung Everland.
Chegaram também notícias que alguns artistas (do sexo masculino) que pereceram devido às balas e mísseis russos defendendo a sua terra. Designadamente Artiom Datsishin, de 43 anos, bailarino principal da Ópera de Kiev, na sequência de ferimentos causados pelas tropas russas.
Felizmente, os Portugueses parece terem andado muito mais ocupados com acções solidárias para com as mulheres e crianças necessitadas fugidas da Ucrânia, do que, propriamente, a punir russos pró-imperialismo.
E isso prova que Portugal, ainda com muitas falhas para com os seus próprios artistas, é um país atento, solidário e respeitador das leis internacionais e da vida humana. Tendo, no passado – e admito tal por experiência própria – acolhido igualmente russos e ucranianos que, sobretudo, no Algarve sempre conviveram com uma certa harmonia, debaixo do nosso sol quente e hospitaleiro.
Do ponto de vista artístico, a presença de elementos de ambos os países é tão insipiente – resume-se, basicamente, a uma ou outra companhia de bailado clássico russo itinerante que em épocas festivas traz um Quebra-Nozes ou uma Copélia aos poucos teatros que têm condições para acolher esse tipo de bailados, a agrupamentos de ópera sem grande fulgor ou a um maestro ou músico que colabore com a única orquestra de linha académico-clássica existente no sul do país – que o seu peso não afecta, de todo, a nossa balança artística.
Nada que se possa comparar com a situação, por exemplo, da Região Autónoma da Madeira em que, há vários anos, uma comunidade muito expressiva de “artistas de Leste” passou a residir no Funchal, aumentando o nível artístico, técnico e didáctico do ensino da música naquela cidade. Onde, com o mesmo fim, há exactamente 75 anos se fixou a ilustre pianista e pedagoga louletana, Maria Campina, uma das fundadoras da Academia de Música da Madeira – hoje, Escola Profissional de Artes – e, mais tarde, juntamente com o seu marido, do Conservatório Regional do Algarve, em 1973.
Com ou sem artistas russos e mais ou menos ucranianos em solo lusitano, as nossas artes performativas – e é basicamente disso que estamos a falar – curiosamente, cada vez parecem depender menos da presença de artistas de Leste, sobretudo a nível interpretativo. Até porque, desde a segunda metade do século XX, os (bons) ventos têm soprado na Europa muito mais dos lados do Ocidente do que do Oriente. E ela própria tem mostrado, senão um bom contraponto aos modelos que transbordaram do Estados Unidos da América para o “velho continente”, uma alternativa viável aos modelos mais academizantes que ainda hoje, normalmente, nos chegam do leste europeu.
António Laginha
Fundador e director da Revista da Dança e investigador integrado no CLEPUL. O autor escreve como lhe ensinaram antes do Acordo Ortográfico de 1990.