O bailarino, professor, director de companhia e gestor cultural nasceu em Lisboa na Maternidade Alfredo da Costa, a 13 de Novembro de 1939, e faleceu no hotel Verride Palácio Santa Catarina, a 28 de Setembro de 2020.
Quando Jorge Salavisa chegou a Lisboa, em 1977, estava muito longe de pertencer ao que então se poderia chamar a “comunidade” da dança nacional; como tinha dançado em Portugal umas escassas vezes, com grupos estrangeiros visitantes, não era muito conhecido como bailarino. Que se saiba, antes de sair do país, entrara apenas num filme, O cantor e a bailarina, ao lado de artistas bem mais experientes, dançando uma coreografia de Fernando Lima, e cuja discreta participação foi muito pouco notada no restrito meio da dança da época. Começara já tarde na profissão, aos dezanove anos, no estúdio de Anna Mascolo e terminou a carreira de bailarino em palcos estrangeiros, aos 35 anos. Veio de Londres, para “reciclar” a sua carreira respondendo a um anúncio para o cargo de director artístico colocado pela Fundação Calouste Gulbenkian numa revista internacional, mas tendo entrado para a companhia na qualidade de professor. Haveria de ficar quase duas décadas dirigindo a (parte visível da) companhia e tendo mudado, definitivamente, a face do Ballet Gulbenkian (BG).
Antes de se reformar tinha já passado a trabalhar em simultâneo na “função pública”, pois acumulava com a direcção do BG o lugar de professor de dança clássica na Escola Artística de Dança do Conservatório Nacional. Saído da companhia, passou a director artístico e gestor na Companhia Nacional de Bailado (CNB) e, posteriormente, a programador no Teatro Municipal de S. Luiz. Pelo meio foi o responsável pela área da dança e do teatro no festival Lisboa Capital Europeia da Cultura (1994) e até participou num programa de televisão – um concurso de dança na RTP que nunca chegou a atingir grande popularidade. Quando em 2011 deixou a vida profissional activa, tinha ascendido a um cargo invejável – Presidente do OPART – um organismo oficial que dirigia o Teatro Nacional de São Carlos (TNSC) e a CNB. A sua promoção na esfera política foi algo inesperada e muito contestada publicamente (o jornal Público publicou vários artigos muito negativos sobre a sua nomeação para o OPART) sobretudo pelos que conheciam as suas características profissionais.
Sobre o início da sua carreira profissional no nosso país, Jorge Salavisa relatou nas suas memórias publicadas em 2012, Dançar a Vida, que antes de assinar contrato com a FCG, em 1977,
[…] o panorama que o Dr. José Blanco (administrador responsável pela orientação e direcção superior dos pelouros de música e bailado na FCG) me descreveu sobre o BG foi assustador […] Fiquei francamente impressionado com Graça Barroso […] além de duas outras excelentes bailarinas, Isabel Queiroz e Maria José Branco, existiam mais dois ou três rapazes com muita qualidade. O resto da companhia apresentava um nível quase provinciano (pp.191-193).
É verdade que dançara em muitas cidades – pelo mundo fora – ao lado de artistas muito conhecidos e por isso a sua opinião foi tão contundente. Mas, para alguns elementos que então integravam o elenco da companhia, ignorar, pura e simplesmente, a maior bailarina portuguesa da sua época, Isabel Santa Rosa (a quem a professora alemã Ruth Asvin havia chamado “a nossa Margot Fonteyn” na sua autobiografia Ma vie et le ballet, 1967, p.51.), e desprezar e desprestigiar os dotes artísticos, a experiência e a personalidade de artistas que, com denotado esforço construíram uma companhia à qual tantos momentos de glória tinham proporcionado num passado não muito longínquo, foram atitudes difícil de aceitar. E, ao contrário de todos os seus antecessores, não sendo Salavisa um criador, a sua trajectória e acção foram bastante diferentes, centrando-se noutras premissas. Ao entrar na Gulbenkian Salavisa tinha bons contactos na casa – designadamente com um dos membros do Conselho de Administração, José Blanco – mas, ao leccionar as primeiras aulas, nem se apercebeu que estava a ser posto à prova como professor pela Comissão Artística (que representava os bailarinos), como, aliás, relata na sua autobiografia.
Nos primeiros meses de trabalho pode-se afirmar que a sua atitude foi diferenciada relativamente aos diversos artistas do grupo. Ele próprio terá criado um fosso entre os bailarinos de que gostava e os outros, tendo, contudo, tentado uma aproximação a muitos dos elementos mais jovens. O novo mestre-de-bailado de uma companhia, então, sem director apresentava-se como um “estrangeirado” que exibia com visível orgulho as suas ligações à Grã-Bretanha, onde vivera muitos anos. Rapidamente se verificou entre os artistas do elenco do BG, que a Fundação contratara para lhes dar aulas um indivíduo com entusiasmo, mas sem os conhecimentos técnicos, o prestígio e a fibra pedagógica de um Jorge Garcia, nem a chama e a tradição académica de um Roland Casenave, que o precederam. Como professor era considerado por muitos do tipo que “não melhora nem piora” a condição física dos artistas. Por outras palavras, era um bom “técnico de manutenção” mas na falta de um adequado sentido de comunicação com os artistas, ninguém parece ter feito grandes progressos com a sua chegada em termos de preparação corporal e evolução artística. Ainda como mestre-de-bailado conseguiu de José Blanco um despacho emanado da Administração da FCG em que lhe eram conferidos “poderes de director” tais como, responsabilidade pela disciplina de trabalho da companhia, programação das temporadas, elaboração dos elencos dos bailados e contratação de bailarinos e coreógrafos, o que fez com que a Comissão Artística eleita pelos bailarinos e em actividade antes da sua nomeação – então constituída apenas por Carlos Trincheiras, Armando Jorge e Vasco Wellenkamp – ficasse, de imediato, apenas com “poderes consultivos”. Aos quais Salavisa, na verdade, nunca recorreu. E deste modo a FCG recuperou, através do recém-contratado elemento, todo o poder sobre os artistas que, durante os anos “quentes” do pós-25 de Abril, acreditaram ter voz relativamente aos seus destinos laborais.
A partir de Setembro, aquele que fora mestre-de-bailado da companhia durante apenas meio ano, assim que assinou um contrato de director e, como, aliás, afirma no seu livro, iniciou uma “cruzada” que duraria vários anos e que, do ponto de vista humano, esteve longe de se revelar muito edificante. “Mal fui nomeado, achei urgente ‘limpar’ os elementos que não possuíam os requisitos artísticos para integrar uma companhia de qualidade” (Salavisa, 2012, p.194). Se os artistas do BG tinham empurrado para fora Sparemblek com o argumento de que sempre lhe havia sido difícil compreender os portugueses “considerando-os seres atrasados e inferiores” (Sobre o Saneamento de Milko Sparemblek, 1975, n.p.) viram-se, então, confrontados com um director nascido na Maternidade Alfredo da Costa (Lisboa) mas que, numa verdadeira sanha depurativa, mostrou, de imediato, que também não tinha o amor à dança e aos (seus) bailarinos demonstrado por Walter Gore. Provavelmente uma característica apreciada por quem, acima dele, estava empenhado em voltar a controlar o que se passava nas caves da Fundação, como outrora o fizera, ainda que de um modo mais subtil, Madalena Perdigão, e algumas vezes o próprio marido, Azeredo Perdigão, figura omnipresente na vida da instituição durante cerca de três décadas e meia.
Sobre o mau clima que se estabeleceu entre vários elementos pertencentes ao quadro artístico do grupo, anos mais tarde, Jorge Salavisa utilizou uma linguagem pouco apropriada e que nada tinha a ver com a generosidade da maioria dos artistas do BG, sobretudo os mais novos, mais cultos e sempre abertos a novas experiências: “se eu tentasse que eles fizessem (William) Forsythe, que eu já tinha vontade de fazer, eles pensavam que isso era diabólico”. (Leça, 2005, citado por Claudia Galhós, 2005, p.8). Anos mais tarde foi ainda mais longe afirmando peremptório nas páginas da sua biografia: “Até as minhas duas assistentes se odiavam” (Salavisa, 2012, p.196). Não sem antes se ter colocado fora do problema ao referir ter sempre sido “imune a intrigas”:
[…] se assim não fosse, nunca teria sobrevivido no ambiente envenenado que se sentia nos ‘subterrâneos’ do BG. Em 1977, os estúdios da companhia eram um poço de intrigas, de má-língua, um verdadeiro antro de ciúmes e invejas. A atmosfera era insuportavelmente irrespirável (Salavisa, 2012, p.195).
Mais de três décadas depois, Salavisa (2012), ao proferir afirmações como “os [meus] primeiros anos no Ballet Gulbenkian foram um autêntico pavor” (p.206), indicia uma desmedida ambição e eventuais laivos de (incompreensível) masoquismo; é, por demais, evidente que muitas das palavras impressas na referida biografia – que terá tido a “mão literária” de um seu amigo pois o autor nunca antes publicara qualquer texto – devem ser relativizadas pois não é difícil imaginar estarem contaminadas com uma boa dose de exagero e fantasia. Se entre os visados houve, realmente, vítimas, seguramente não foi o director artístico que a Fundação elegeu mas sim os artistas sumariamente despedidos ou cerceados nos seus mais básicos anseios artísticos. Ainda que seja compreensível que a forte competitividade do meio fomentasse algum tipo de tensão, e até de mexericos como alguns referem, certamente a maior preocupação dos bailarinos que eram conscientes e trabalhadores era lutar diariamente para desenvolver uma carreira séria e construtiva. Na época, sabendo que “existiam sérias dúvidas sobre o futuro da companhia” (Salavisa, 2012, p.192) quase todos desejavam dar o seu melhor e exibir o mais possível as suas capacidades, quase só se preocupando em dançar, e, se possível, entrar em três bailados por noite. Pelas razões apontadas pode-se concluir que Salavisa não se terá esforçado muito para criar uma plataforma de entendimento e um clima saudável que granjeassem a necessária amizade e a consideração dos artistas que representava e dirigia mantendo o respeito com que, inicialmente, fora recebido. Décadas depois, ao analisar essa conturbada fase da dança portuguesa, verifica-se que até detalhes sem aparente importância nas acções de todas as partes envolvidas foram melindrosos e tiveram grande peso, pois tudo se entrelaçou com tudo do ponto de vista humano e artístico e as suas consequências perduraram por muitos e longos anos.
Com o intuito de mostrar trabalho no “segundo piso”, Salavisa tratou de contratar algumas “estrelas” estrangeiras para expor aos artistas e público portugueses o modelo de bailarino que aspirava para o “novo” grupo. Porém, muitas dessas aquisições resultaram em verdadeiros fracassos. Erro que cometeu repetidamente ao longo da sua carreira de director e que até menciona, em jeito de lamento, no “Prólogo” da sua autobiografia (Salavisa, 2012). A título de exemplo refira-se que a escolha de um amigo íntimo em fim de carreira, Cristian Adams, para bailarino principal do elenco – para além de uma boa bailarina inglesa, Jane Salier, que trouxe consigo o marido de nacionalidade sueca, Peder Lewin, fisicamente debilitado e que não se apresentou em palco uma única vez durante o seu contrato – foram factos a que o SM fechou os olhos mas que os outros artistas sentiram na pele. Perante casos como estes (e outros) não só é difícil falar de sensatez mas, sobretudo, de qualidades de gestão.
A administração da FCG, e, sobretudo, o responsável no SM pela companhia de dança, Carlos Pontes Leça, sempre atentos ao que se passava no “piso menos dois”, quando começaram a perceber que nem tudo “funcionava sobre rodas” com o novo director, decidiram passar a controlar melhor as opções de Salavisa. A título de exemplo refira-se que este quis trazer para a companhia uma obra que ele próprio dançara com alguma frequência e que lhe era muito querida, Otelo, do seu amigo Peter Darrell (1929-1987), coreógrafo e director do Ballet da Escócia. Nessa peça Salavisa criara o papel de Iago que terá sido o mais expressivo de toda a sua carreira e no qual terá brilhado numa das mais escabrosas personagens da literatura “shakespeariana”. Ainda numa fase insípida de ensaios, na qual estava envolvido o autor da presente tese, o bailado foi bruscamente retirado da tabela de serviço devido ao Dr. Pontes Leça ter descido aos estúdios e verificado, com os seus próprios olhos, a falta de qualidade (ou de interesse) que a peça teria para o público do BG. De um modo eufemístico foi sugerido, na altura, que a inesperada exclusão se devia ao título da dança, o qual poderia ser identificado com a paradigmática figura “revolucionária” daquele período, o capitão Otelo Saraiva de Carvalho; argumento muito pouco convincente que terá sido lançado para não desautorizar o director artístico da companhia. Independentemente de qualquer justificação – que, aliás, por delicadeza ou lisura profissional, deveria ter sido dada aos artistas envolvidos – a verdade é que essa decisão, contrária aos propósitos de Salavisa, prova que, muitas vezes, o que a FCG lhe dava com uma mão lhe retirava com a outra.
Noutra ocasião, o director do BG fez deslocar a Sintra a ballerina francesa Violette Verdy – uma das musas de Balanchine que se encontrava de férias em Lisboa – para lhe mostrar a qualidade da sua companhia a fim de acertar com ela a importação do emblemático Tchaikovsky pas-de-deux do mestre russo-americano, do qual ela detinha não os direitos de autor mas a autorização de “remontagem”. Amiga do bailarino Jorge Trincheiras, que a levou até ao Cine-Teatro Carlos Manuel – hoje Centro Cultural Olga Cadaval – Mme Verdy, após assistir ao espectáculo, recusou a pretensão de Salavisa. Nessa altura, o argumento de que não havia na companhia um par de bailarinos com o nível técnico exigido para abordar tal obra, resultou em mais outro projecto do director que resvalou para o vazio!
No que concerne à mudança operada a nível de elenco – consubstanciada na dispensa de muitas pessoas forçando-lhes a saída do grupo – a FCG, como era seu apanágio, tentou sempre manter a discrição sem, no entanto, lhes ter evitado sérios problemas do foro psicológico. E, na sua grande maioria, decorrentes da desajeitada actuação de Salavisa. O processo de saída de alguns dos elementos que ajudaram a construir e fizeram parte da história do grupo, “crescendo” com ele, foi lento e doloroso e, também por isso, a afirmação do novo director nem sempre foi muito pacífica. Até porque, como atrás se afirmou, muitos deles o consideravam uma espécie de outsider que, tendo abandonado o país ainda jovem, pouco ou nada fizera pela dança portuguesa nos pioneiros anos 60. Quando foi confiada a Salavisa a direcção artística do BG, Carlos Trincheiras passou a ocupar oficialmente o cargo de coreógrafo residente e, nas duas temporadas seguintes (1977-78 e 1978-79), cumulativamente, o de mestre-de-bailado.
Enquanto ainda de professor da companhia, Salavisa já tinha convidado um coreógrafo de origem inglesa com quem havia trabalhado anteriormente e cuja obra conhecia bem, Jack Carter (1917-1998). Posteriormente continuou essa tendência, juntando àquele outro britânico, Christopher Bruce (n. 1945), assim como o australiano Barry Moreland (n. 1943). Posteriormente começou a convidar também coreógrafos europeus de renome mundial, tais como o holandês Hans van Manen, o checo Jiri Kylian e o francês Maurice Béjart. Uma linha, aliás, proposta por Sparemblek, como assinalámos no capítulo precedente, ao deixar registados como sugestão os nomes de Van Manen e do norte-americano Louis Falco. Posteriormente, Salavisa alargaria a sua “política artística” chamando alguns coreógrafos que já haviam trabalhado no BG, nomeadamente um norte-americano de reconhecidíssima qualidade, Lar Lubovitch, e o próprio Sparemblek. Quanto ao (inusitado) convite ao seu antecessor, respectivamente nos anos de 1981, 1982 e 1985 para remontar O triunfo de Afrodite (mús. Orff) e Sinfonia dos salmos, e criar Pulcinella (ambos com música de Stravinski), Salavisa argumentou “que foi para se parar de endeusar uma pessoa que fora saneada” e em Dançar a vida afirma mesmo: “Se Sparemblek voltasse a ser aceite pela companhia, eu, logicamente, poria de imediato o meu lugar à disposição” (Salavisa, 2012, p.200). Tal não aconteceu no primeiro regresso do ex-director esloveno, e os factos fazem supor que terá sido a FCG que, independentemente dos sentimentos pretensamente altruístas e de grande sinceridade que Salavisa, muitos anos depois, pretendeu fazer passar no seu livro, lhe impôs um segundo retorno – ainda mais importante para Sparemblek – com o fim de realizar uma criação. Que se saiba ninguém se demitiu mesmo com três regressos. Sem qualquer espanto para quem bem o conhecia, o ex-director do BG acabou por concluir, duas décadas depois, que “Sparemblek fora uma desilusão” e “estava ultrapassado” (Salavisa, 2012, p.200) sem, contudo, nunca admitir o óbvio: este foi mais um dos muitos reveses que alguém no SM (ou na Administração) da FCG lhe impôs.
Tendo recebido uma companhia algo desfalcada, sobretudo em relação ao elenco masculino, Salavisa – como já se mencionou – trouxe alguns bailarinos seus conhecidos de Inglaterra e audicionou, em Londres, jovens artistas que, juntamente com alunos dos cursos de bailado da FCG, que ele próprio, afincadamente, se dedicou a preparar, deram origem ao “novo” Ballet Gulbenkian, uma companhia com o seu “rosto”. O maior mérito desde processo foi o incentivo dado a esse grupo de bailarinos nacionais, especialmente do sexo masculino, que agrupou à sua volta, construindo, assim, um elenco maioritariamente português. Esse trunfo foi amplamente publicitado na imprensa tal como o facto de o BG ter, finalmente, conquistado o direito a um dirigente artístico português. Uma combinação de marketing que a FCG e o próprio Salavisa muito utilizaram em seu proveito. (…)
Quanto às tão publicitadas “opções artísticas” der Salavisa parecem ter implicado mais rupturas a nível de meios humanos do que, propriamente, numa filosofia de reportório. O visionário Sparemblek já tinha planeado trazer a Lisboa muitos dos nomes que Salavisa viria a contratar.
O que é um facto a salientar é que Jorge Salavisa (ou Pontes Leça) assegurou no Serviço de Música as verbas suficientes para trazer repetidamente coreógrafos europeus de nomeada – bastante caros – como foi o caso do notável trio formado por Hans van Manen, Christopher Bruce e Jiri Kilyan. Salavisa acabou por gerir um certo eclectismo – que, indiscutivelmente sempre agradou ao público da Gulbenkian – apostando sistematicamente em coreógrafos seguros a par do talento criativo da casa. Primeiro impôs-se Vasco Wellenkamp – que dera os primeiros passos na coreografia ainda antes da entrada de Salavisa na Gulbenkian –, depois Olga Roriz, que desenvolveu o seu trabalho durante o longo consulado de Salavisa mas abandonou o grupo ainda dentro desse período; e, com bastante menos expressão, alguns jovens criadores emergentes no elenco: Vera Mantero, Benvindo Fonseca, Luís Damas e Rui Pinto, entre outros. (…)
Como balanço positivo pode-se assinalar que durante a longa vigência de Salavisa à frente dos destinos do BG, de Setembro de 1977 até ao final da temporada de 1995-96 – o seu espectáculo de “despedida” foi em Março de 1996, tendo saído oficialmente uns meses depois – entre os coreógrafos estrangeiros mais requisitados destacam-se Hans van Manen, com seis obras, Christopher Bruce e Jiri Kylian com quatro, Louis Falco com três e Peter Sparling com duas. Recuperaram-se duas peças de sucesso de John Butler (Catulli carmina e O som da noite) e as famosas danças O Messias e Whirligogs de Lubovitch a quem, posteriormente, foram solicitadas duas remontagens de obras nunca vistas em Portugal: Por onde as sombras-Valley e O tempo antes do tempo depois. A norte-americana Elisa Monte criou Life time, e o jovem inglês Johnatan Lunn, Movimento para uma tela. Apesar de não ter conseguido o sucesso que invariavelmente conhecia com a companhia de Paul Taylor e, até, com algumas outras, Salavisa adquiriu para o 4.º Programa da temporada de 1989-90 – estreada a 20 de Abril de 1990 – a apreciada peça do conhecido coreógrafo norte-americano, Arden court (1981), um trabalho de Taylor, um dos grandes mestres da dança moderna, que surgiu algo isolado no acervo do grupo. (…)
Em 1992 Jorge Salavisa colaborou, segundo o próprio, “em ambiente de grande secretismo” (Salavisa, 2012, p.224), com Carlos Pontes Leça e Rui Vieira Nery na elaboração de um texto com propostas de reformas para o BG, a pedido da administração da FCG. O referido documento e as recomendações nele delineadas só se tornaram públicos já depois da extinção do grupo. Nele se alvitrava a associação da Companhia Nacional de Bailado com o Ballet Gulbenkian e a criação de uma companhia mais jovem, gerida por uma administração e direcção centralizadas e dependentes do Ministério da Cultura, mas com o apoio financeiro da Gulbenkian. Na verdade tratava-se, grosso modo, de uma reformulação da trilogia que existira na dança da capital no ano de 1985: BG, CNB e CDL. A Fundação tentou assim encontrar a chave para abrir uma porta por onde saísse um grupo que indubitavelmente lhe dera enorme projecção além-fronteiras. Essa solução, paradoxalmente, faria a Fundação retroceder quatro décadas tentando voltar-se ao início do ciclo, quando apoiava financeiramente o Centro Português de Bailado que, por sua vez, geria o seu Grupo Experimental de Ballet. Mas Salavisa vai mais longe nas suas confissões em livro e refere que apresentou a José Blanco e a Pereira Leal, os nomes de Paulo Ribeiro e Luísa Taveira para a direcção, respectivamente, da “companhia experimental” e da “companhia nacional” (Salavisa, 2012, p.225). Inexplicavelmente, ou não, ao longo da sua vida profissional, quando não ocupou cargos de relevo na dança portuguesa teve o privilégio de sugerir e o poder de ver aceite nomes que lançou ou impôs, dentro e fora da Fundação, ditados pelo seu livre arbítrio. Enquanto Pontes Leça, dentro daquela instituição, teve a subtil – mas nem por isso menos eficaz – autoridade de, entre muitas outras coisas, seleccionar até os candidatos à concessão de bolsas para estudos de dança, mais ou menos alargados, dentro e fora do país. Inclusivamente verificou-se um caso peculiar de um pedido de apoio para a elaboração de uma tese de doutoramento sobre o Ballet Gulbenkian que dirigido ao então Serviço de Bolsas de Estudo foi negado pelo Serviço de Música, com a assinatura única do seu director-adjunto.
Na prática, o modelo artístico e de gestão praticados na companhia não eram muito diferentes dos de muitas outras instituições europeias de dança contemporânea de sucesso. Também não era um molde esgotado como alguns, com interesses pouco transparentes, quiseram fazer crer para justificar o seu estrangulamento. Entre as grandes companhias russas de São Petersburgo e Moscovo, as norte-americanas de Nova Iorque e as nacionais de Paris e Londres, e os pequenos grupos ou o universo dos chamados criadores-solistas, sempre existiu um espaço à medida do BG num país com as características do nosso.
Quando Salavisa abandonou a companhia, depois de um longo consulado de quase duas decadas à frente do Ballet Gulbenkian, de acordo com afirmações suas a seu próprio pedido, apesar das críticas tecidas por alguma imprensa mais esclarecida, deixou atrás de si um organismo com nome feito na Europa e até conhecido nos Estados Unidos, América do Sul e Extremo Oriente. Saiu com a consciência de que o grupo denunciava problemas de várias ordens como claramente deixou transparecer na sua autobiografia. Porém, não se parece ter apercebido que a companhia já denunciava uma crise identitária que se havia de ampliar e ser bem mais visível uns poucos anos depois.
A grande maioria dos artistas estava objectivamente cansada da longa gestão de Salavisa e sem o estímulo de outrora; o público e, principalmente, a crítica apontavam algum esgotamento artístico perante as escolhas cada vez menos interessantes de um director que, abandonando os grandes coreógrafos, se deixou contaminar por um certo efeito de moda. O que, aliás, foi fazendo perder a empatia e a identificação dos espectadores habituados a obras com profundidade, coreograficamente consistentes e dançadas com inquestionável energia e vibração. (…)
Excertos da Tese de Doutoramento de António Laginha (Universidade de Coimbra, 2014) intitulada Memória da Saudade – o percurso artístico do Ballet Gulbenkian como estrutura de referência na dança portuguesa (1961-2005)