O dia 16 de Junho de 2022, data da estreia oficial do filme UM CORPO QUE DANÇA de Marco Martins, sobre o extinto Ballet Gulbenkian (1961-2005), traz à memória de muitos Portugueses um caso (estranho e pouco edificante) que a Fundação Gulbenkian há muito havia arrumado.
O documentário, infelizmente, não poderá deixar de marcar (pela negativa) a “memória da saudade” de uma estrutura extraordinária que, basicamente, foi aniquilada depois de 44 notáveis anos de um “serviço público artístico”, ímpar e meritório. Aquela que, indubitavelmente, foi a maior companhia de dança portuguesa do século vinte (com uma projecção nacional e internacional que nenhuma outra atingiu até ao presente) aparece retratada pelo realizador Marco Martins de um modo incongruente, do ponto de vista histórico, preconceituoso, do ponto de vista artístico, e, sobretudo desequilibrado. Por conseguinte desrespeitando a História e, sobretudo, a obra de muitos – e grandes artistas da dança – em benefício de alguns que nada de muito substantivo deixaram no agrupamento.
Poder-se-ia começar por cogitar, de um modo simplista, o que é que se havia de esperar de um realizador que fizera um documentário biográfico panegírico de Jorge Salavisa (Keep Going – 2011) pretensioso, ferido de subjectividade e com duvidosa sustentação artística? Ou porque razão a Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), segundo as palavras da antiga presidente do Conselho de Administração, Isabel Mota, ao encomendar um trabalho em co-produção com a RTP – logo, com o dinheiro de todos os contribuintes – foi fazer a vontade a um defunto (Salavisa). Justamente depois de anos de deliberado esquecimento e de se ter tentado apagar o rasto da companhia, dispersando até a vasta cenografia e os valiosíssimos figurinos do Ballet Gulbenkian (BG)?
Neste dia, personalidades como Azeredo e Madalena Perdigão, Carlos Pontes Leça, Águeda Sena, Carlos Trincheiras, Norman Dixon, Walter Gore e muitos outros artistas que, incansavelmente, estabeleceram os alicerces de uma companhia tão particular, bem poderão dar voltas na tumba, pois este retrato em pouco dignifica uma estrutura que já deixou de ser “um corpo que dança” há 17 anos e que só em 1975 recebeu o nome pelo qual ficou conhecida. Logo, o título está deliberada e duplamente errado.
Tendo a FCG, como atrás se afirmou, propositadamente alienado o seu espólio tangível (cenografia e figurinos) e, irremediavelmente, deixado perder uma parte muito substantiva do seu acervo coreográfico, felizmente ainda existem alguns protagonistas sérios e rigorosos para contar uma história que é feita de muitos “heróis” entre bailarinos, coreógrafos, professores, cenógrafos, figurinistas, músicos e tantos técnicos que dedicaram as suas vidas a um projecto tão singular.
Reportando-nos ao longo filme, e deixando para trás os dois erros crassos que acompanham o título, a incidência da película, desde logo, parece ter-se colocado em aspectos perfeitamente colaterais, como é o caso da Guerra Colonial (que aniquilou um projecto nascido grosso modo na época do Grupo Experimental de Ballet – o primeiro nome da companhia que teve o apoio da FCG já em Maio de 1961 – intitulado Companhia Portuguesa de Bailado) e da figura do norte-americano Merce Cunningham, que nunca teve, sequer, uma obra no reportório do BG.
É indiscutível – pois há documentação escrita – que os sucessivos directores artísticos pré-Salavisa ter-se-ão esforçado, antes dos anos 80, por criar uma companhia com uma personalidade artística própria e não com menor profissionalismo, e em elevar sempre a exigência do trabalho de grandes coreógrafos (incluindo os portugueses) e bailarinos, artistas plásticos e músicos, tendo sido o croata Milko Sparemblek que, sem sombra de dúvida, transformou o BG numa companhia de craveira internacional e de referência. E que, aliás, foi quem criou os estúdios coreográficos de onde vieram a sair os dois mais prolíficos coreógrafos da companhia dirigida por Salavisa: Vasco Welenkamp e Olga Roriz. Ambos especialmente apoiados pelo Serviço de Música, na pessoa do director-adjunto Carlos Pontes Leça. Figura importantíssima que o realizador simplesmente ignorou por completo mas que teve um papel determinante nos destinos do BG, desde a saída de Madalena Perdição da Fundação até à extinção do grupo pelo Conselho de Administração presidido por Rui Vilar. O qual terá ordenado o aniquilamento da companhia sob o pretexto de se vir a apoiar a Dança de modos “diferentes”, coisa que nunca veio a acontecer. O mesmo que, alegadamente, depois de Isabel Mota ter feito a vontade a Salavisa financiando este filme, terá obrigado o realizador a mudar o seu final. O “esquecimento” da figura de Pontes Leça (e, mesmo, de Luís Pereira Leal) e as trapalhadas ou trapalhices que terão acompanhado a peça, provam que Martins não quis entender ou não entendeu nada do que foi a orgânica do BG e muito menos o trabalho dos seus colaboradores mais directos. E, uma vez mais, optou por dar a alguns um protagonismo muito para além do seu merecimento, como se um documentário não fosse um trabalho académico mas sim de ficção. É evidente que não só o documentário está eivado de ideologia, mas também não teve colaboradores à altura.
Se alguns artistas, como Clara Andermatt – que nem sequer foi bailarina da companhia – e outros que por ela passaram com a maior das brevidades (como é o caso de Francisco Camacho e João Fiadeiro) se sentirão muito felizes e envaidecidos por ver o seu trabalho altamente valorizado por Martins, o que é certo é que muitos outros não se poderão identificar com um filme sectário e desequilibrado que procura glorificar uma personagem que, na verdade, tantas vezes se limitou a obedecer. Já para não mencionar que a película se perde por longas divagações de ordem sociológica, política e económica em detrimento da própria Dança e dos talentosos artistas do BG – o que deveria ser a sua verdadeira essência – e de fixar com legitimidade, respeito e coerência o seu valioso legado neste filme.
UM CORPO QUE DANÇA resultou, por assim dizer, em mais numa homenagem a alguns dos que fizeram a história mais recente do Ballet Gulbenkian, deixando ao livre arbítrio de cada um o inesquecível legado de três figuras seminais na direcção da companhia: Dixon, Gore e Sparemblek; as preciosas colaborações de coreógrafos tão importantes nas primeiras décadas da companhia como Águeda Sena, Carlos Trincheiras e, mesmo, Armando Jorge; as gloriosas colaborações de artistas plásticos como Artur Casais e Nuno Côrte-Real e ainda uma plêiade de compositores que a FCG, com o seu poderio financeiro, conseguiu agrupar em torno de um projecto comum e quase sempre exaltante artisticamente.
Se houvesse ilusões quanto às qualidades de Marco Martins como historiador e observador de uma estrutura coreográfica de relevo – que se identifica com a Dança Portuguesa dos anos 60 aos 2000 – esta segunda encomenda para realizar um documentário sobre a Arte de Terpsicore, não deixaria quaisquer dúvidas.
Em resumo: se se cortassem muitas das imagens ditas “mundanas” e “revolucionárias” de um filme demasiado “politizado” (ficando logo com menos de um quarto da sua duração) com que o realizador, à mingua de obras coreográficas pré-Salavisa, foi resgatar dos arquivos de Cinemateca Nacional ou da RTP, e se tivesse feito um esforço por ter mais e melhor dança do que tanta “palha” visual, este documentário teria sido comercialmente mais atractivo e, certamente, honrado a memória e o trabalho de muito mais pessoas que bem o merecem. Ficou-se por um “corte e cose” sem quaisquer imagens originais – Martins até teve pudor em mostrar o rosto dos seus entrevistados de que se ouve apenas a voz – qual repasto requentado em que, para todos quantos não tiveram oportunidade de conhecer a admirável companhia, se serviu gato por lebre.
“Um Corpo que Dança”: Documentário de Marco Martins estreia esta semana nos cinemas