Com um programa eminentemente europeu (belga-luso-sueco) e contemporâneo, a Companhia Nacional de Bailado (CNB), apresentou no início de Março, no Teatro Camões, o seu primeiro projecto do ano de 2023.
A verdade é que a obra que abriu a soirée, Grosse Fugue – que a sua autora, a coreógrafa belga Anne Teresa De Keersmaeker, foi roubar ao título a uma peça musical de Beethoven – já tinha sido apresentada na companhia e Avant qu’il n’y ait le silence, uma estreia creditada a Fábio Lopez (cuja tradução será mais ou menos Antes que houvesse o silêncio), já andava no ar há algum tempo. Apenas Cacti (Cactos), do sueco Alexander Ekman, terá sido uma escolha deliberada de Carlos Prado, director artístico da única companhia, actualmente, a que o Ministério da Cultura proporciona fundos para uma actividade contínua e, relativamente, regular.
O fio condutor do espectáculo – se é que se poderá denominar fio ou, mesmo, condutor – foi o (jovem) Quarteto de Cordas de Matosinhos, constituído por Jorge Alves, Beatriz Raimundo, Tomás Soares e Victor Vieira. O mesmo apareceu nas três obras, designadamente no palco e no fosso de orquestra, sentado ou a deambular pela cena, com os seus instrumentos de madeira em punho.
GRANDE FUGA
A verdade é que De Keersmaeker, cuja obra é, a todos os títulos inquestionável, tem sido privilegiada em Portugal – em detrimento de outros coreógrafos tão bons quanto ela – pelo que, a inclusão de obras suas no reportório da CNB, poderá apresentar muitas qualidades mas já nenhuma… surpresa.
Grosse Fugue é (mais) uma peça, em cena aberta, para uma mulher (Henriett Ventura) e sete homens (Frederico Loureiro, Miguel Ramalho, Joshua Earl, Xavier Carmo, Tiago Amaral, Francisco Morais e João Costa), todos envergando fatos pretos e camisa branca, executando movimentos mecânicos, rápidos, repetitivos e cerebrais, que a coreógrafa utiliza desde a sua peça-fetiche Rosas danst rosas, de 1983. Muito do bailado em causa passa por corridas, perseguições, voltas rápidas e saltos, seguidos de voos rasantes para o solo, com um semblante fechado e uma dose de evidente atletismo. Trata-se de um daqueles trabalhos unissexo – todos fazem os mesmos movimentos, basicamente, em uníssono ou em cânone – em que a roupa vai desparecendo (começa-se por tirar os casacos, depois as camisas e os sapatos), sem qualquer razão aparente e, no final, a música termina e a missão dos artistas fica definitivamente cumprida.
Ainda que a obra não tenha despertado grandes alterações de humor na plateia, sobretudo pela ausência de narrativa e de sentido apelo emocional, os oito intérpretes estiveram à altura do que lhes foi solicitado em termos técnicos e estilísticos. Arrancando da obra De Keersmaeker, concebida em conjunto com os bailarinos da sua companhia – sistema, quantas vezes oportunista, que tão bem tem funcionado para coreógrafos menores – tudo o que havia para trazer à superfície de um trabalho já com mais de 30 anos.
ANTES QUE HOUVESSE O SILÊNCIO
Avant qu’il n’y ait le silence – coreografia de Fábio Lopez
Ao contrário da primeira, a segunda obra em exibição neste programa da CNB, inserida numa linha académico-clássica e algo nostálgica nos propósitos, constituiu uma estreia mundial. Depois do coreógrafo português (que vive em França onde dirige a Companhia Ilícita, em Bayonne) ter criado uma peça para os alunos da sua alma mater, a Escola Artística de Dança do Conservatório Nacional, há uns anos.
Avant qu’ill n’y ait le silence, para o Quarteto de Cordas nº 3, de Gavin Bryars, foi interpretado por quatro casais (Raquel Fidalgo-Gonçalo Andrade, Leonor de Jesus-Aeden Pittendreigh, Patrícia Main-Francisco Sebastião, Inês Ferrer-Miguel Ramalho e Almudena Maldonado-João Costa) em frente de uma cenografia projectada e crepitante de tonalidades líquidas.
Tratando-se de (mais) um bailado abstracto – dedicado à memória de um antigo professor do coreógrafo, Marc de Graef, que, por sinal, integrou os elencos do extinto Ballet Gulbenkian e da própria Companhia Nacional de Bailado, o foco da peça situa-se na “simplicidade do gesto” e no “abandono” dos corpos desenhados no espaço, através da nobre “linguagem” da dança clássica, com as bailarinas dançando em pontas.
Sendo apresentado como uma espécie de memento mori (tradução livre do latim: lembre-se da morte) Fábio Lopez parece cair na “armadilha” do sentimentalismo – um dado tão português na Dança – descartando verdadeiros “abismos da alma” ou as experiências drásticas que, frequentemente, acompanham os mistérios da morte.
É, sem dúvida, um bailado fotogénico, elaborado com minúcia, esteticamente equilibrado, desenvolto e que prima pelo decoro sem, em algum momento, correr qualquer tipo de riscos, e muito bem interpretado pelos citados artistas da CNB.
CACTOS
Cacti – coreografia Alexander Ekman
O trabalho que Alexandre Ekman produziu em 2010 e que se tornou num êxito mundial, Cacti, tem vindo a ser interpretado por umas boas duas dezenas de companhias à volta do mundo e sido indicado para prémios de grande prestígio internacional. O bailado parece ter sido desenhado para terminar um programa em alta, com alguma euforia, protagonizado por um grupo muito substancial de bailarinos, vestidos com fato de treino, manipulando objectos (placas quadradas brancas e catos de plástico em vasos) rindo e falando, em jeito de animada paródia colectiva. Pelo que, é uma obra segura e, que apesar de requerer um grande conjunto (19 bailarinos) muitas das vezes funcionando em uníssono, parece não exigir recursos técnicos extraordinários da parte dos intérpretes. O que não quer dizer que não requeira uma absoluta concentração da parte de todos em cena. Inclusivamente dos músicos que, se atravessam em frente dos bailarinos, e tentam fazer parte da própria “festa”.
Apenas um pretenso dueto amoroso, dançado sobre um diálogo gravado, fez sobressair do conjunto, pelo seu sentido de oportunidade, habilidades mímicas e incisivo clima jocoso, dois interpretes: Anyah Siddall e Tiago Amaral.
Constituindo-se como uma proposta eminentemente enérgica, despojada, humorística e provocadora, Cactos, inicia-se num plano bidimensional em que todos os artistas de touca preta na cabeça e pó talco a voar dela, insistem na repetição de movimentos triviais sentados em cima de várias linhas de placas de madeira, umas atrás das outras. Com a introdução em cena dos vasos de plantas falsas, aqueles quadrados brancos elevam-se do chão formando uma inusitada cenografia, pouco elaborada mas bastante volumosa. Com tudo o que de inesperado e paradoxalmente aleatório acontece no palco, a presença de músicos e instrumentos misturados com os bailarinos – que ouvem e se apropriam também de sons gravados -, confere à peça uma desconcertante estranheza. As possíveis leituras que os espectadores possam fazer da obra serão, certamente, muito menos importantes que a contagiante dinâmica criada em cima do palco e que, sem qualquer dúvida, contagia o mais sossegado dos espectadores.
O desenho de luzes que Tom Visser, habilmente, infundiu em Cacti, é uma mais-valia para uma obra que deve muito aos jogos de feixes luminosos verticais que, repetidamente, incidem sobre os bailarinos no centro das placas e mudam rápida e frequentemente.
Ao assinalar que a dança em causa foi estreada em Haia (Holanda) pelo Nederlands Dans Theater 2, provavelmente remeter-nos-á para o trabalho do grande artista checo Jiri Kylián, a quem, certamente, o sueco Alexandre Ekman, deverá alguma da sua inspiração.
Fotos: Hugo David