Nada mais estimulante para os admiradores da Companhia Nacional de Bailado (CNB) que é tê-la de volta ao sítio onde ela deve pertencer. Isto é ao coração da cidade de Lisboa, o que quer dizer ao palco do emblemático Teatro Nacional de S. Carlos.
É caso para se dizer, ainda bem que o “desterrado” Teatro Camões – para onde a CNB foi “empurrada” há mais de duas décadas – está em obras. E podia continuar por muitas mais temporadas para que os seus artistas se exibissem em palcos mais acessíveis, geograficamente falando, e pudessem competir em matéria de público com as outras artes.
Depois de uma peça romântica, La Sylphide, na época natalícia – dançada com alegria e verve por quase todos os elementos do elenco – o programa pré-Páscoa, reuniu muito menos bailarinos que protagonizaram obras de três coreógrafos de língua inglesa: um russo-americano, um inglês e um norte-americano. Logo, uma triple bill que poderia ser vista em qualquer parte do mundo (se bem que a mais carismática e antiga sala de espectáculos do Chiado favorece até as obras mais desvalidas) mas que, à partida, não traria grandes novidades. E não trouxe!
Concerto Barocco (1936) do muito imitado George Balanchine é uma obra talhada para abrir com brilho e energia qualquer evento de dança. Logo, uma aposta sem quaisquer riscos. E as bailarinas da CNB – a obra só tem um elemento masculino que basicamente funciona como porteur – fizeram por merecer os sonoros aplausos no final. A música de Bach, cerebral e matemática, foi dirigida com pulso pelo maestro Pedro Carneiro à frente da Orquestra Sinfónica Portuguesa – com dois violinos solistas, Álvaro Pereira e José Pereira – e inspirou as duas bailarinas Miyu Matsui e Inês Ferrer que lideraram um grupo de doze artistas. Vestidas de imaculado branco, com fatos que parecem saídos de uma aula de dança clássica, as bailarinas interpretaram uma obra rendilhada e límpida em que o nível de ambição é alto e o trabalho em pontas não se compadece com a mínima falha. Com linhas de movimento a tempo ou a contratempo, em cânone ou em uníssono, desenhados com maestria pelo imortal Balanchine, Concerto Barocco permanece como uma obra-prima do reportório do século XX, que desafia o tempo e quem a interpreta e estimula, com a sua arquitectura e luminosidade, o espectador mais circunspecto.
O segundo título, Upstream, uma estreia absoluta da autoria de um jovem coreógrafo inglês, Andrew McNicol, entrou numa posição contrastante e, certamente, com a intenção de manter o nível do programa proposto por Carlos Prado, o director artístico da CNB. Trata-se de uma peça para cinco pares dançada à frente um enorme tela plástica esvoaçante e prateada que parece incomodar mais do que dar profundidade à obra. Apesar de seguir uma matriz bem estruturada com sucessivos movimentos com casais, com homens, com mulheres e com um conjunto final, a concepção coreográfica denuncia uma certa falta de maturidade no desenvolvimento do material coreográfico. Não é que seja um trabalho “demasiado académico”, mas também não apresenta soluções particularmente criativas na sua composição. Passou, pois, sem grande impacto nem vibração e, curiosamente, a excelente iluminação é do mesmo autor da cenografia, que parece completamente desadequada a um certo clima de sentimentalismo que perpassa pelo bailado cuja partitura musical afina pelo diapasão do compositor inglês Peter Gregson. Já os figurinos, de Helena de Medeiros, trouxeram uma certa distinção, sobretudo ao naipe feminino.
A fechar o programa Workwithinwork, uma obra de mestre assinada por William Forsythe, que não sendo a melhor escolha para o epílogo de um programa (que foi perdendo luz) não deixa de ser um trabalho de grande exigência e intricada invenção e sólida qualidade coreográfica. Tal como na maioria das obras de maturidade do coreógrafo norte-americano criadas na Europa (onde não terão chegado peças mais antigas como, por exemplo, Love Songs) registam-se muitas corridas e caminhadas, rodopios em desequilíbrio e frases de movimento agressivo, soltas e inesperadas que terminam com os intérpretes se esgueirando pelos bastidores. Percebe-se, desde logo, que vocabulário “forsytheano” é talhado para forçar e contrariar a natureza do tradicional trabalho feminino em sapatilhas de pontas. A fim de evitar que o elenco masculino apenas manipule ou ajude as bailarinas a brilhar, Billy Forsythe é mestre num tipo de dança masculina que se impõe por uma certa agressividade (sempre controlada) que tão bem combina com movimento pristino e altamente exigente do ponto de vista físico. Ao longo de um Dueto para dois Violinos – que, em gravação, esvaziou o fosso de orquestra – do compositor italiano Luciano Berio (1925-2003), sete homens e nove mulheres entram e saem do palco no escuro diluindo-se no negro do fundo do palco como se uma força vital os impelisse a continuar a tirar da penumbra aquilo que os olhos na plateia se esforçam por tentar descobrir.
Em resumo, antes do próximo programa da CNB em Maio – que deveria comemorar os 50 anos do 25 de Abril e apenas apresenta uma obra de uma das referências vivas da dança portuguesa, Vasco Wellemkamp – a nossa estimada companhia nacional de dança privilegiou o bailado executado em pontas com a assinatura de dois coreógrafos consagrados e de um ainda bem jovem. Tratou-se, pois, de uma soirée com um bom nível de interpretação e em que pontua a dança de qualidade, mas que poderia ter sido apresentada por qualquer outra companhia com recursos financeiros, em qualquer canto do mundo em que exista paz e serenidade para se desfrutar dos imensos prazeres da dança teatral.
AL