CNB: UM NOVO QUEBRA-NOZES ENTRE O EQUÍVOCO E O FRACASSO

CNB: UM NOVO QUEBRA-NOZES ENTRE O EQUÍVOCO E O FRACASSO

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Ainda que a Companhia Nacional de Bailado (CNB) apareça neste período natalício com uma (espécie de) estreia no Teatro Camões, a ideia de desconstruir o velhinho “Quebra-Nozes” – estreado em 1892 – não é, de todo, nova em Portugal.

Em 99, Bruno Cochat “atreveu-se” a criar uma versão cómica da conhecida dança, juntamente com o médico Pinto Correia a quem se deveu muito do mérito de uma peça essencialmente teatral, muito acutilante e algo perversa, mas que acabou por não vingar! Dançou-se uma meia dúzia de vezes e… não deixou rasto! Esse propósito, então, já nem era original pois, em muitos outros países em que a tradição o impõe como clássico do Natal por excelência, designadamente os Estados Unidos da América, já vários coreógrafos o fizeram. Mormente Mark Morris que começou por produzir (em 1991 em Bruxelas) o seu delicioso e irreverente “Hard Nut” – que a RTP apresentou algumas vezes – e em que se “chocalhou” o conto de Ernest Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1822) com o título “O Quebra-nozes e o Rei dos Ratos”, que outro escritor, Alexandre Dumas, converteu em argumento de bailado, sem não se ter, contudo, descartado a boa dança.

Por outro lado, Portugal, curiosamente, nunca precisou de versões manifestamente medíocres (tipo russas para digressão ou do “género Mehmet Balkan”) pois dentro da linha tradicional, Madalena Perdigão impulsionou, em 1971, um memorável “Quebra Nozes” com uma produção do mais alto gabarito em que pontuavam uns soberbos cenários e figurinos de Artur Casais, para uma coreografia do histórico Anton Dolin.

A invenção da directora da CNB, Luísa Taveira, que duplicou o título – “Quebra Nozes, Quebra Nozes” – para descer (drasticamente) a qualidade, assenta na coreografia de Fernando Duarte e na encenação e dramaturgia de André Teodósio. Na verdade, como este último justifica no programa, “não há nenhum mal em reinventar tradições” mas para isso há que que contar com muito mais do que voluntarismo, pretensão, esperteza (mais ou menos saloia) e… muito dinheiro !

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Não havendo qualquer fórmula para transformar obras de fundo em “remakes” contemporâneos, isso apenas se justifica se a coreografia mantiver ou elevar o nível da original e, naturalmente, a adaptação ganhar em desenvoltura, lógica e economia dramatúrgica. Ora nada disso se verifica na presente versão da CNB. Antes pelo contrário. Embora tudo pretenda encher muito o olho – a começar pelos textos dos programas – a utilização da ideia da duplicação de personagens, que está presente e bem visível ao longo de todo o bailado, é exemplo disso. Verifica-se que há, frequentemente, informação a mais no movimento e muito ruído na cenografia e adereços, já para não falar na mais que duvidosa qualidade dos figurinos também assinados pela dupla João Vale e Nuno Ferreira. Enquanto a confusa narrativa se perde no meio de catadupas de banalidades e “faits divers”, o prólogo – que se pretende uma sátira ao mundo das famílias (desestruturadas) – exibe toda uma panóplia de elementos quotidianos tais como o sempre presente telemóvel e as enjoativas “selfies”.

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Toda a primeira parte do espectáculo apresenta um visual medonho – o cenário inicial impõe uma árvore gigante de copa plastificada (em vez da esperada verdura natalícia) com uma espécie de casa/contentor encaixada no tronco – e o nível de dança é de tal modo fraco que a chamada “Valsa das Neves” mais parece uma festa de meninas de escola amadora de ballet! Até a intervenção do coro – num dos mais belos trechos de Tchaikovsky – foi descartada e a bela dança árabe, cujo efeito sonoro é sempre um dos pontos altos deste bailado, apresenta uma coreografia indigente e desprovida de qualquer imaginação ou magia. Os figurinos – sobretudo os masculinos – da “Valsa das Flores” são outro exemplo da total inabilidade de concepção de trajes para dançar, e os padrões do tecido que, no epílogo, vestem umas personagens mais ou menos espúrias que surgem ao lado dos bailarinos principais, constituem mais um acto falhado. Nem se percebe que são repetições das letras Q e N que Teodósio, num acesso de delírio, pretende associar ao conceito “queer nation”. Na verdade muitas das cenas mais parecem um piscar de olho a uma “cultura pop” mal amanhada resultando numa certa barafunda, protagonizada por uma “tropa fandanga”, que nem com legendas alguém consegue compreender. A dança chinesa com uma multidão de chapéus com “smiles amarelhos” na cabeça dos bailarinos tem alguma graça e até imaginação e produz um bom efeito visual ao contrário de certas liberdades tomadas pelos criadores que surgem completamente gratuitas e sem sentido. Estão nesse caso uma Wonder Woman e um “capuchinho vermelho”, bem como um chapéu e lenço de cowboy à volta do pescoço do Cavaleiro da Fada do Açúcar (Carlos Pinillos). Esta personagem, do mais fino recorte clássico, protagonizada por Filipa Castro também não brilhou muito pois o coreógrafo intrometeu, sem qualquer vantagem, Clara (Solange Melo) e mais o Quebra Nozes (Dominic Whitbrook) no Grand Pas-de-Deux. Apesar dos dois bailarinos citados e ainda Mark Biocca – no papel de um Drosselmeyer particularmente mal vestido – terem dançado com “aplomb”, segurança e energia, as intervenções de Miguel Ramalho, como Fritz, e Margarida Pimenta, no papel de uma tia, resultaram nas mais engraçadas e melhor caracterizadas de todo o espectáculo!

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A iluminação de Daniel Worm d’Assumpção é pouco relevante para este “Quebra Nozes” híbrido e de fancaria, porém, a contribuição da Orquestra Sinfónica Portuguesa, sob a batuta do argentino José Miguel Esandi, ainda conseguiu trazer ao palco do Teatro Camões um leve toque de sonho e sortilégio.

Assim sendo, uma pergunta (recorrente na CNB) se impõe: para quê consumir cerâmicas do Redondo ou das Caldas quando podemos deleitar os olhos com porcelana da Vista Alegre ?

Este “exercício” coreográfico e dramatúrgico, visivelmente oneroso e de futuro incerto, que não pareceu conseguir exercitar a imaginação e acordar a fantasia do público, designadamente a franja infanto-juvenil, estará em cena, em Lisboa, até ao dia 21 de Dezembro… já com muitos bilhetes vendidos! É que um título com mais de cem anos sempre produz um bom efeito de marketing.

Fotos: Rodrigo de Souza

Published by Antonio Laginha

Autoria e redação

António Laginha, editor e autor da maioria dos textos da RD, escreve como aprendeu antes do pretenso Acordo Ortográfico de 1990, o qual não foi ratificado por todos os países de língua portuguesa.

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