A Companhia Nacional de Bailado (CNB) iniciou a sua temporada de 2018-19 com uma directora nova, Sofia Campos, e uma coreografia velha: ITMOI.
Velha, mas não muito usada, pois estreou-se em Maio de 2013, em Grenoble (França) na companhia do próprio coreógrafo, Akram Khan, e foi dançada em Portugal pela primeira vez (no Teatro Camões) em Fevereiro de 2017. E, se não surgir alguma (boa) surpresa, será, certamente, a melhor obra da presente temporada.
A actual directora artística da CNB transitou do Teatro Nacional D. Maria II – em que foi subdirectora alguns anos – e, estranhamente, parece que irá cumprir integralmente um programa delineado pelo seu antecessor, Paulo Ribeiro. Logo, não terá responsabilidade directa nas opções artísticas do cartaz anunciado, ainda que, naturalmente, terá a seu cargo a qualidade do desempenho de umas quantas obras que parecem ter sido escolhidas ao acaso. Sem qualquer critério nem coerência estética e estilística. Que, aliás, há muito, é uma premissa presente e, ao mesmo tempo, um cutelo, sobre a cabeça da CNB. instituição que, nos últimos anos, tem vindo a perder espectadores de um modo particularmente acentuado. Com escolhas como um Quebra-Nozes, já em Dezembro próximo, que foi, provavelmente, a pior versão que se fez em Portugal (a melhor terá sido a do Ballet Gulbenkian com coreografia de Anton Dolin e os maravilhosos cenários e figurinos de Artur Casais) não admira que o público fuja do Camões, ainda que o bailado clássico em Portugal, por vezes até mal dançado, costume ter espectadores. Contrariar essa realidade será, mesmo, a maior tarefa de Sofia Campos, juntamente com uma gestão de pessoal menos caótica, sobretudo devido à “dispersão” e a um inacreditável “superavit” de bailarinos, que passam anos e anos sem dançar!
ITMOI, título formado com as iniciais das palavras In the mind of Igor, mais de um ano e meio após ter sido visto em Lisboa não perdeu uma matriz de referência que é, justamente, uma mistura de mistério e estranheza. O coreógrafo britânico partiu das “dinâmicas com as quais Stravinski, transformou o mundo clássico da música evocando emoções através de padrões, em vez de expressões, e como esses padrões foram enraizados no conceito de uma mulher que dança até à morte”. Khan usou Stravinski sem utilizar a sua música – a peça tem três compositores: Nitin Sawhney, Jocelyn Pook Ben Frost – e cita “alegoricamente” uma série de elementos da “Sagração da Primavera”, sem encontrarmos mais que analogias ou metáforas.
Trata-se de um trabalho em que salta à vista um léxico de origem folclórica ancorado na dança clássica indiana, habilmente misturado com linguagens contemporâneas diversas e elementos teatrais sofisticados e criativos. É uma dança com a duração de pouco mais de uma hora, muito bem construída, consistente e, visualmente, muito atractiva (devido certamente às belas luzes de Fabian Piccioli, aos impactantes figurinos de Kimie Nakano e à depurada cenografia de Matt Deely) prenhe de sortilégios e de um ritmo que prende o espectador desde o primeiro minuto. E em que os silêncios se articulam magistralmente com as passagens sonoras e os conjuntos alternam com solos de personagem algo bizarras.
Tudo começa com um espécie de gritaria selvagem, ininteligível e possante de um “sacerdote” (Lourenço Ferreira) quase sempre envolto em penumbras e desconforto. Depois surge a enigmática personagem de Stravinski (interpretada por Miguel Ramalho) que, pouco a pouco, se vai diluindo nas outras e perdendo importância. Khan convoca outras figuras mais ou menos reconhecíveis: uma “virgem” (Isadora Valero) que é ensopada com pó branco pela dominadora “lady” (Isabel Galriça), um sensual “fauno” com longos chifres (Tiago Coelho), um “acrobata” de longa saia rodada (Francisco Sebastião) e uma “aprendiz” (Irina Oliveira). Estes, e mais oito bailarinos, conferem uma força muito especial à peça, destacando-se a figura ímpar de Isabel Galriça e o meticuloso trabalho de Lourenço Ferreira.
A abertura e o final da peça são extremamente bem conseguidos com a ajuda de uma cenografia simples mas muito eficaz. Trata-se de um conjunto de barras em forma de rectângulo gigante que sobe e se inclina por cima dos artistas e de uma enorme bola-pêndulo que cria uma magia muito especial quando balança aparecendo e desaparecendo entre o claro e o escuro da cena. A música, bastante diversificada, parece evoluir em três planos distintos: umas tonalidades indianas desenvolvidas por Sawhney, uns acordes com tonalidades folclóricas de Pook e uma certa agressividade sonora no trabalho de Frost. Mas, no conjunto, esta inusitada combinação funciona muito bem, resultando o movimento inventado por Khan num invisível cimento bem trabalhado e fluído, especialmente nos conjuntos. O bailado estrutura-se a partir de uma série de quadros e, apesar de ter sido concebido para celebrar o primeiro centenário da criação da obra-prima de Stravinski, a “Sagração da Primavera”, esse espantoso texto musical é citado apenas durante alguns (imperceptíveis) segundos, mesmo no final.
É, pois, nesta miscelânea de figuras (que vivem e se projectam no fundo do palco) e de situações mais ou menos perturbadores que Khan parece esboçar um bem pensado ritual de sombras e de emoções.
E o mais curioso é que nunca se percebe se ITMOI é um bailado sobre o pesadelo de um coreógrafo ou sobre o sonho fugaz de um bailarino.