A Companhia Nacional de Bailado (CNB) há muito – pelo menos uns três anos – que batalha, afincadamente, na guerra do ecletismo. Seja lá o que isso for em termos programáticos. A verdade é que o tão desejado equilíbrio entre o clássico e o contemporâneo jamais se concretizou de um modo em que público e bailarinos saíssem a ganhar. Mas entre o clássico, com classe, e o contemporâneo decididamente coevo, a CNB, em geral, fica-se pelo… eclético!
Depois de “Giselle” e de um programa “holandês”, o coreógrafo-director artístico (ou vice-versa já que a ordem dos factores se provou, neste caso, ser indiferente) Vasco Wellenkamp, propôs um programa muito centrado (e sentado) em fórmulas que alinham pelo “déjà vu” e, infelizmente, para os espectadores, compaginam um mesmo nível visual e, sobretudo, emocional.
O programa apresentado no Teatro Camões, sob o signo das “novas criações”, reuniu três nomes que, objectivamente, nada trouxeram de novo – ou estimulante – ao estafado reportório CNB.
Um casal já conhecido da casa, Katarzyna Gdaniec e Marco Cantalupo, abriu a soirée com a peça, “Light” (Luz) que, para além de longa, tem tudo a ver com o tempo instável de começo de Primavera: chover no molhado.
Aparentemente, a obra para sete bailarinos desenrola-se dentro de um espaço que quase parece o interior da capa de um livro, cujas folhas vão mudando de cor. Os artistas, quais transeuntes desorientados, e as suas cadeiras, vão mudando de posição no meio de um certo desamparo emocional e muito descabelamento. Não falta, a meio da peça, uma rapariga de sutiã negro que faz de cachecol para dois rapazes. Vera Alves, Henriette Ventura, Isabel Galriça, Pedro Mascarenhas, Xavier Carmo, Tom Colin e Samuel Retortillo, deram bem conta do recado mas, seguindo um identificável “espírito de moda”, à dupla criativa faltou luz coreográfica e inventiva para iluminar os espectadores do Teatro Camões que se revelaram parcos em aplausos.
Curiosamente a peça, que foi apresentada no programa e vendida como estreia absoluta pela CNB – será que também foi paga como tal? – é uma reposição de um trabalho originalmente intitulado "No.thing" e estreado pela Companhia Linga, de Gdaniec e Cantalupo, estando, inclusivamente, acessível no Youtube (*)
Requiem, Poesia e .. mais cadeiras
Seguiu-se “Requiem”, da autoria do coreógrafo-residente da CNB, Rui Lopes Graça, que, muito apropriadamente dedicou a obra à memória da (querida) figurinista Vera Castro.
Trata-se de um “esboço” de dança para cinco bailarinos e outras tantas cadeiras, uma vez que, quando, hipoteticamente se começa a estruturar no tempo e a desenhar-se no espaço, termina sem chegar a motivar olhadelas furtivas nos relógios dos espectadores.
Mas o que poderá ser um defeito, por vezes e por ironia do destino, torna-se numa qualidade. Entre duas peças longas e sem história, “Requiem” dançado pela portuguesa Irina Oliveira, o holandês Freek Damen e os espanhóis Alba Tapia, Africa Sobrino e Carlos Pinillos, sobre uma bela música (cantada) de Henrik Góreki, trouxe uma nostálgica promessa de vida, entre fumos, avanços e recuos, durante não mais que oito minutos.
“A Chuva Cai na Poeira Como no Poema”, sendo um título roubado à poesia de Eugénio de Andrade, é , só por si, de uma beleza estonteante, bem como os poemas escolhidos de Herberto Helder, Luisa Neto Jorge, Mário Cesariny e António Franco Alexandre, com que Diogo Dória ilustrou alguns segmentos da peça. Mas ao actor – que muito tem trabalhado com Manoel de Oliveira – faltou-lhe à vontade, parecendo algo estático e perdido no meio de tanta agilidade física e (mais) cadeiras, e sem a “naturalidade” que a sua fugidia personagem, obviamente, exigia.
Ao movimento faltou-lhe chama criativa e, sobretudo, espanto e pulsação. Kylian, há décadas atrás, podia ter dado o mote a Wellenkamp, e este, decididamente, ir um pouco mais longe do que oferecer mais uma das suas putativas réstias de memória prenhes de auto-citações.
Do cenário, com uma rampa e duas peças rastejantes, com o status de escultura, o que, resumidamente, se poderá dizer é que Isamu Noguchi já fez muito mais acutilante e apelativo, para Martha Graham e Merce Cunningham, em meados do século passado.
De uma peça de grupo que demorou bem mais de meio ano em ensaios – e que vai ser dançada cinco vezes destinando-se depois a ir para o sótão porque nem é apropriada para seguir em digressão – seria legítimo esperar mais que uns habilidosos duetos contorcionistas aqui e acolá, uns conjuntos em que tudo respira e flutua, mais ou menos apelativos aos olhos, e, no final, uns inusitados chuviscos sobre dois bailarinos perdidos no centro do palco.
Sobre uma colagem musical, esta bastante eclética, em que Carlos Zíngaro contribuiu com o “cimento” sonoro, um expressivo grupo de bailarinos, por vezes, anula-se individualmente para dar voz a uma proposta que usa muito mais os meios que a imaginação.
Florbela Espanca clamava ser “pagã e anarquista como qualquer pantera que se preza”. Wellenkamp (com excepção do seu “Requiem” criado há uns poucos anos), pelo contrário, parece que, hoje, apenas consegue soltar umas garras de… gatinho.
Apesar dos bailarinos se terem apresentado focados e com muito bom nível de concentração – embora nem todos tenham uma técnica de dança contemporânea que consiga escamotear uma certa leveza e, até, alguma superficialidade que a dança clássica, por vezes, não só permite como até fomenta – isso não chegou para disfarçar as fragilidades de uma espécie de “sinfonia do tédio” em três andamentos que, penosamente, se arrastou pelo palco do moderno Teatro Camões.
(*) http://www.youtube.com/watch?v=483fqKlBPDM