Há cerca de um ano, a Companhia Nacional de Bailado (CNB) apresentou aquele que provavelmente foi o seu pior espectáculo em mais de quatro décadas de existência! Tratou-se de uma soirée preenchida com obras de Tânia Carvalho gizada por Paulo Ribeiro que, meses depois, deixaria a direcção da companhia.
Para o bem e para o mal, a programação que ainda corre no Teatro Camões leva a assinatura daquele coreógrafo – e director do Ballet Gulbenkian à época da sua extinção-, agora à espera de abrir uma Casa da Dança, oferecida pela Câmara Municipal de Almada.
Depois de um Quebra-Nozes, artisticamente inenarrável, no último Natal – da autoria de outro antigo director da CNB, o turco Mehmet Balkan -, a actual direcção protagonizada por Sofia Campos manteve um D. Quixote russo, remontado há cerca de três décadas pela dupla Eric e Maya Volodina, segundo a versão de Alexander Gorski (1900) baseada no original de Marius Petipa, com o “selo” do Ballet Bolchoi, teatro onde se estreou em 1869.
Apesar de ser um dos bailados com o enredo mais “descabelado” e uma música “que não faz os ouvidos pensar muito”, pelo menos é alegre, desafiador (sobretudo para os bailarinos principais) e mantém uma linha académico-clássica que a CNB deve seguir com o mínimo de rigor, competência e coerência.
A verdade é que há há anos que não se via a companhia dançar com tanta verve. E o público a corresponder com sorrisos nos lábios, brilho nos olhos e energia nas mãos. E isso é vital para uma instituição com a “linha” da CNB que, naturalmente, tem fortes responsabilidades artísticas para com aqueles que a sustentam.
Desde logo, trata-se de uma versão sem grandes rasgos de brilhantismo – em que Cervantes, praticamente, não é tido nem achado, como, de resto em quase todas as obras coreográficas em que o factor literatura se revela um veículo meramente assessório – que resulta numa sucessiva repetição de danças meio espanholadas e algumas aciganadas, com um presumível “sonho” do “cavaleiro de triste figura” povoado de bailarinas clássicas.
De um modo geral, este D. Quixote é um encadeado de divertissements (danças virtuosas desprovidas de acção dramática) com algumas cenas de mímica pelo meio que tentam passar a história de um acidentado namoro envolvido por muita gitaneria. Em que o sonhador fidalgo de la Mancha, e o (não muito) gordo Sancho Pança, praticamente, não passam de figuras decorativas. Numa obra em que, basicamente, o enredo se resume às tropelias do jovem e fogoso barbeiro Basílio, que corre atrás da sua endiabrada Kitri na presença de amigos e conhecidos, fidalgos e gente do povo que nunca param de dançar ao longo de duas horas e meia. Estranhamente, esta versão tem algumas peculiaridades e omite um dos seus solos mais ornamentados, nervosos e rápidos, o da personagem feminina “Amor”, e abusa de danças ciganas com muitos folhos e castanholas em que as bailarinas nem sempre abusaram dos necessários cambrés (curvatura das costas).
É, pois, um D. Quixote em que falta “populaça” e algum “duende” e mostra, desde os primeiros acordes, uma fragilidade notória que é ausência de uma orquestra. Até porque a gravação da música de Ludwig Minkus – com acrescentos de Riccardo Drigo – utilizada nos espectáculos é de qualidade muito duvidosa.
Já aquela que se revela a maior virtude desta produção, é, sem dúvida, a interpretação da maioria dos artistas que, desta vez, puseram adrenalina e jogo de cintura num bailado que tem que ser (invariavelmente) interpretado com garra e fantasia para dar consistência ao trabalho e verosimilhança ao próprio estilo da obra.
Dos pares que fizeram o seu début na peça destacaram-se o português Francisco Sebastião e a japonesa Miyu Matsui. Ela, num registo mais sóbrio, dançou com fluidez e delicadeza, enquanto ele demonstrou uma alegria e paixão dignas de nota. Foi, sem dúvida, a surpresa desta produção já que o papel de Basílio fica-lhe a… matar! Francisco é carismático e um excelente bailarino de “demi-caractère” (histriónico e virtuoso) que tem nesta peça um desempenho notável.
De um modo algo discreto Sebastião, que passou algum tempo no S. Francisco Ballet, nos Estados Unidos da América, já tinha imposto a sua presença na companhia no difícil papel do ídolo de bronze em La Bayadère, mas, desta vez, foi bem mais longe demonstrando ser, aos 24 anos, um dos mais bem apetrechados artistas da nova geração da CNB.
Outro par excitante e que deu nas vistas foi Lourenço Ferreira e Tatiana Grenkova, sobretudo pela empatia e comunicação que criaram em cena entre ambos e com os próprios colegas. Ela dança com alma, jovialidade e atrevimento e ele não lhe fica atrás. Aliás, sendo um dos melhores bailarinos de linha clássica da CNB, Lourenço demonstrou também abordar com inteligência tanto o papel de Basílio como de Espada, que interpretou várias vezes. O seu jogo de cena foi travesso e sedutor combinando um interessante jogo cénico com uma técnica limpa e bastante segura. Para além de uma rara musicalidade.
Já João Pedro Costa e Isadora Valero formaram um par muito jovem e com potencial mas ainda deixando transparecer algumas inconsistências. Com um ar um pouco mais adolescente que os outros colegas, apesar de cumprirem tecnicamente, por vezes, pareceram estar um pouco à margem das suas personagens. Ele também dançou o papel de Espada, com aplomb e envolvimento.
Finalmente, o par de estrelas da companhia, Carlos Pinillos e Filipa Castro, já com larga experiência e muito traquejo neste tipo de obras (ele até é espanhol), uma vez mais, não deixaram os seus créditos por mãos alheias.
O que é notório e ainda faz da CNB uma companhia algo disfuncional, em termos de elenco e administrativos, é o facto de muitos bailarinos principais e solistas, nesta peça, fazerem papéis de representação secundários. E alguns dos bailarinos que se apresentam nos papéis de maior responsabilidade, há anos, saírem periodicamente do corpo de baile. É urgente que este tipo de incongruências seja revisto e, sobretudo, que o reportório faça jus a uma companhia nacional que, infelizmente, há anos, não guarda qualquer reportório verdadeiramente português.
Se há um ano a CNB estava a ir (alegremente) para o buraco, nesta altura parece estar ainda a cumprir calendário… com as próximas criações da autoria de Rui Lopes Graça e Vitor Hugo Pontes, já em Maio, ainda encomendadas por Paulo Ribeiro.
Entretanto, aguarda-se a visita do Ballet Nacional da China, no final do mês de Março, também no Teatro Camões, e, sobretudo, o esperado anúncio de uma temporada que volte a fazer sorrir e a sonhar os artistas e também o público português.
Fotos: Hugo David