Falta de propostas e agitação não é coisa de que se possa acusar a Companhia Nacional de Bailado (CNB) neste início de temporada a meio de Outubro! A qualidade até pode não ser muita mas, com uma estreia em Lisboa de um espectáculo infantil de “bolso”, de Sónia Baptista (no estúdio da Vítor Cordon que tudo leva a crer para entreter os bailarinos que raramente dançam), com dois dos seus artistas – acompanhados de um casal “independente” que não pertence à CNB – a viajar para a Coreia do Sul com a peça “Tábua Rasa” (a única digressão internacional da Companhia) e mais a estreia da obra “Quinze bailarinos e tempo incerto”, lá quantidade, isso não falta. Até aulas de dança para crianças deficientes – como aparece nos vídeos do Ballet Real de Inglaterra – e para adultos que sintam a frustração de não ter sido bailarinos (agora já podem partilhar os espelhos e corredores com os artistas da companhia) e muitas outras “inutilidades” e “faits divers” para encher o olho incauto e desperdiçar o dinheiro que a EDP (ainda) despeja na companhia… há um pouco de tudo. Pelo espesso programa impresso percebe-se que se trata de uma espécie de temporada de regabofe, numa altura de forte crise económica, em que o desinteresse intelectual e a objectiva falta de formação de muitos, faz com que a dança viva um momento delicado – e duro – para os artistas fora da sombrinha da CNB e até para o seu público.
Uma hora e pouco é quanto dura a obra creditada, por esta ordem, ao artista plástico João Penalva (direcção, cenografia e figurinos) e ao coreógrafo Rui Lopes Graça. Assim sendo, entende-se com dificuldade se em “Quinze bailarinos e tempo incerto”, que teve estreia no palco do Teatro Camões no Parque das Nações com a sala composta, a arte maior da coreografia – gestão do desenho e da execução do movimento – se submete à própria “produção” visual do espectáculo. Que, assinale-se, nada traz de novo embora tenha sido iluminado, com “finesse”, por Nuno Meira. Também a palavra “incerto”, no título, levanta algumas interrogações uma vez que o “batimento” da música gravada não sofre oscilações na peça e não existe nela partes improvisadas que lhe pudessem alterar a duração. Assim sendo, a incerteza está longe de ser óbvia.
Na verdade depois de, ao longo dos anos, termos visto na CNB “cópias” mais ou menos conseguidas de Bell, Baush e Balanchine – só para evocar três bês – agora foi a vez de vermos uma dança que, estranhamente, se assemelha em muito às obras do defunto Merce Cunningham.
Desde logo, depurada, enérgica, virginalmente alva e excelentemente executada, poderia também intitular-se “Peça para 14 bailarinos e Sérgio Navarro” (o escultórico e sensual bailarino espanhol que começa e termina a peça sozinho em palco), isto sem qualquer demérito para os outros colegas.
Tal como nas peças de Cunningham (1919-2009), um coreógrafo norte-americano muito querido, sobretudo em França, a narrativa coreográfica espalha-se por um palco aberto, organizada em solos, duetos, trios e conjuntos deliberadamente desencontrados. Tal como na dança académico-clássica, neste tipo de “dança contemporânea” muito popular nos Estados Unidos da América nos anos 60 e 70, os artistas utilizam as pernas como navalhas, com precisão, vigor e racionalismo, ou como um lápis que desenha belas poses que se metamorfoseiam em suspensão atrás de suspensão. Desde que o pano sobe com apenas um bailarino firmemente apoiado numa só perna e e outra levantada acima da cabeça, até que desce com o mesmo rapaz noutra pose ainda mais expressiva de cabeça para baixo, todos eles executam inúmeras sequências com muito controle e concentração, como uma espécie de rotinas bem marcadas e roubadas ao léxico da dança clássica de um modo algo seco e muito académico. São corpos apolíneos, elásticos, de uma serenidade e elegância incontornáveis, algo solitários e de uma abertura que nada esconde nem disfarça. Sem grande contacto físico entre eles, nem visível conteúdo emocional, todos entram e saem de cena visivelmente realizados com os feitos que, sem quaisquer inputs “decorativos”, levam da aula para o palco. São passos miudinhos, piruetas, saltos em amplitude, vincadas extensões dos membros inferiores e braços que cortam o espaço, dentro dos cânones académicos da forçada rotação para o exterior das pernas. Ou pequenos golpes (ou torções) de ancas que, deliberadamente, desafiam o decoro que o bailado clássico vem exigindo há vários séculos nos estúdios e em cena. Deve-se também mencionar que as sucessivas situações que se desenham ao longo de toda a obra, com fôlego e muito foco, são fluídas e ágeis e apenas parecem acalmar quando os bailarinos, já no final, se vão se baixando e gentilmente tocando o chão com as duas mãos, em pose de visível relaxamento. Curiosamente até Cunningham – o irlandês David Cunningham – parece ter sentido o espírito (já algo fora de moda) de John Cage, o companheiro de Merce, que gravava sons do quotidiano, deixando os intérpretes bastante entregues à sua respiração e ao próprio batimento cardíaco. A paisagem sonora de “Quinze bailarinos e tempo incerto” alimenta-se de sirenes, chuva e trovoada, sons de auto-estradas e de coisas ainda menos relevantes como o canto de cigarras, umas vezes mais calmas e outras mais agitadas. Trata-se, pois, de um tipo de sonoridade que tanto pode casar com tudo como com nada, que não excita mas não deixa desanimar…
Tendo em conta que “a obra não põe apenas em jogo a psicologia do artista, mas também a do espectador”, como diria o historiador gaulês, René Huyghe, a inventiva de Lopes Graça é bastante questionável neste trabalho enquanto de Penava se esperava infinitamente mais, devido ao seu notável percurso internacional nas artes plásticas. E também por ter sido o primeiro – e possivlmente o único – bailarino português que esteve na companhia de Pina Baush, no início dos anos 70. Provavelmente mais do que a vaga limitação de um espaço cénico por uma correnteza de projectores no solo encostados ao fundo do palco, mais do que a utilização de um espelho imenso que duplica o numero de artistas em cena e confere profundidade… e muito mais do que um toque de subtileza cromática que se traduz na utilização de um fato completo amarelo colado ao corpo (apenas um) que percorre aleatoriamente os corpos dos bailarinos vestidos de imaculado branco ao longo do espectáculo. Fotos: Bruno Simão e Jorge Carmona
António Laginha