Em tempo de noites (abundantemente) estivais, voltou à capital portuguesa o Festival ao Largo, justamente no dia em que um dos maiores ícones da Cultura Portuguesa, Amália Rodrigues – que tanto gostava de dança – terá nascido há 100 anos… E que a notável pianista, Maria João Pires, celebrou o seu 76º aniversário.
Desta vez, longe do acanhado largo fronteiro ao Teatro Nacional de São Carlos, onde as supracitadas artistas pouco actuaram, e em frente ao edifício onde nasceu outra figura monumental do universo lusófono: Fernando Pessoa.
Do festival se tem dito – desde a sua invenção pelo OPART, Organismo de Produção Artística, público e político que gere o São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado (CNB) – que era o festival certo (porque ajudava a animar no Verão a Baixa de Lisboa) no local errado. Apesar de, há mais de 227 anos, ser um espaço emblemático da cidade, três quartos da praça eram, ano após ano, ocupados com o palco e o respectivo aparato cénico. Logo, a maioria dos corajosos espectadores tinha que se sujeitar a ver os artistas em pé, quase que pendurados nas árvores, se não fossem “amigos” do banco patrocinador ou não levassem, masoquisticamente, uma cadeira para o evento.
Na verdade, se para a música (orquestra e coro do São Carlos) sempre foi uma boa mostra para quem não tem poder aquisitivo para comprar uma plateia no nosso primeiro teatro de ópera, já para a dança não se pode dizer o mesmo. É que a CNB, há anos desterrada no Teatro Camões – onde, notória e progressivamente, tem vindo a perder espectadores – há muito que não põe os pés no palco do São Carlos para dançar, com a dignidade que merece, uma obra de reportório. Ao contrário, tem recebido como uma espécie de “bónus” no citado festival, deslocar-se à Baixa para dançar… na rua. A última coisa que, actualmente, a CNB precisa, é – como há uns dois séculos era hábito – que as suas bailarinas venham do Parque das Nações, para “animar” os bailes de Carnaval do Chiado. Ela deve, por direito próprio e por vontade de lisboetas e dos Portugueses, que sustentam quem dança e quem já não dança, ter um lugar activo, criativo e representativo na programação do São Carlos, como em qualquer Covent Garden que se preze!
Ora a CNB foi o grupo escolhido para, na última semana de Julho, encerrar um (novo) ciclo de espectáculos em que, para além de outros corpos artísticos do São Carlos também geridos pelo OPART, participou pela primeira vez a arte de Talma, através da peça “Sopro”, do Teatro Nacional D. Maria II.
Aquele que terá sido o primeiro evento de dança ao vivo, no País, neste famigerado período pós-pandemia, felizmente “desconfinou” a companhia, porém, dentro de condições que levantam dívidas em relação às condições impostas pela Direcção-Geral da Saúde. Desde logo, devido à própria natureza do trabalho dos bailarinos. Não sendo por acaso que as companhias de dança em todo o mundo estejam bem mais cautelosas e pareçam muito menos ambiciosas.
Ainda que com o “selecto” público “mascarado” e pouco dado a euforias, a CNB, felizmente, saiu do Largo de São Carlos (não para um espaço amplo e acessível como seria, por exemplo, o Terreiro do Paço) para o pátio do Ministério da Cultura. Leia-se, o espaço interior descoberto do Palácio da Ajuda, em que se plantou um palco, bem mais apropriado a concertos de rock, coberto por uma estrutura metálica folheada a tiras de plástico.
Logo, fazer a dança sobressair neste novo espaço não se afigurava fácil e com nada menos que duas estreias mundiais – assinadas por jovens coreógrafos portugueses que dançam na CNB – num programa em que a técnica de dança, naturalmente, se esperava menos segura. Foi, pois, necessário incluir umas pinceladas de alegria e movimento eufórico, com uns excertos do I acto de um “D. Quixote” russo, abundante em revoadas de folhos, castanholas e capas para alegrar o olho.
Antes disso, a amena noite abriu com “Sinfonia das lamentações”, um trabalho de Miguel Ramalho, bailarino principal da companhia e laborioso coreógrafo, sobre a partitura homónima do compositor polaco, Henryk Górecki.
Dança para 12 elementos vestidos de negro, seis rapazes e mais seis raparigas, joga bastante bem com o trabalho contrapontual entre os solistas que, sucessivamente, se vão evidenciando, e o grupo que funciona como uma espécie de porto de abrigo. É uma dança manifestamente competente – a nível coreográfico e interpretativo -, desenvolta e com passagens algo fotogénicas, coreografada com pulso e consistência. Ainda assim, a espessura dramática da música – incluindo uma triste e pesada canção para voz feminina – impõe-se, necessitando a peça de descer do palco para dar um murro no estômago dos espectadores. Esse golpe de asa faltou na obra de Ramalho que pareceu muito colado a um conjunto de jovens e enérgicos bailarinos, que raramente param para dar oportunidade ao público de olhar para as suas entranhas.
O trocadilho “Algo-Ritmo”, serviu de título ao trabalho da dupla Henriett Ventura-Xavier Carmo, para uma composição original de César Viana e Sara Ross.
Desde logo a lista de conteúdos proposta era ousada pois “uma imersão num espaço que não é espaço, num tempo que não é tempo, senão aqueles que lhes quisermos atribuir, e em que o interprete nele se imprime como ser único e singular, dentro do colectivo que o rodeia”, não é coisa para se olhar de ânimo leve! Além de que “a fórmula de Fibonacci”, que serviu de inspiração para o trabalho, produziu uma dança para cinco raparigas de calças e soutien negro algo esquemática e, frequentemente, num mesmo registo. Com laivos de “estética japonesa”, para tal contribuiu o som de um instrumento de sopro de madeira tocado ao vivo, “Algo-Ritmo”, foi algo que aconteceu “de passagem” e com pouco ritmo, que, por vezes, parecia um “estudo” digno de qualquer grupo de dança moderna norte-americana dos anos 1970.
E a terminar a noite uma rapsódia de números virtuosos de dança que levantou um pouco o espírito dos espectadores espalhados por um espaço que, não sendo o Cour Carrée do Louvre, com um palco adequado, poderia albergar uma “Bela Adormecida” ou um outro bailado académico-clássico de contornos mais “aristocráticos”.
Filipa Castro e Carlos Pinillos – nos papéis principais, Quitéria e Basílio – e Inês Ferrer e João Costa (como Mercedes e Espada) lideraram umas dezenas de bailarinos que, na medida do possível, alegraram os que se deslocaram à Ajuda, com vontade de, pouco a pouco, retomar o seu contacto com a Dança.
A verdade é que se, actualmente, a política é investir nos organismos artísticos nacionais tutelados pelo Estado, para quando um festival “temático” abrangente, equilibrado e criativo – ainda que generoso para o público lisboeta e extensível a turistas que o podem pagar – em vez de um pot-pourri de banalidades coreográficas e musicais em fim de temporada?
Citando Pessoa, como adequado epílogo , “depois de tudo ficaram três coisas: a certeza de que estamos sempre a começar… a certeza de que é preciso continuar e a certeza de que podemos ser interrompidos antes de terminar. Por isso devemos fazer da interrupção um caminho novo (e) da queda um passo de dança (…)