No fim-de-semana de 19-21 de Maio, a UAU apresenta no Teatro Tivoli – em plena Avenida da Liberdade, em Lisboa – mais um espectáculo de superlativa qualidade e de alto entretenimento, intitulado Tutu, com interpretação dos Chicos Mambo e coreografia de Philippe Lafeuille.
Dir-se-ia, mesmo, um “crowd pleasing” internacional, como muitos outros – como o fabuloso “show” do palhaço russo Slava -, que têm vindo regularmente a Portugal pela mão do entusiasta empresário Paulo Dias.
O que o grupo não tem de original na ideia, tem de engenhoso na concepção do delicioso evento, interpretado pois seis homens e uma figura vestida de negro e de cara tapada que, só no final, se percebe ser uma discreta mulher.
Melhor dizendo, à primeira vista estes “rapazes do mambo” são uma espécie de Les Ballets Trockadero de Monte Carlo, à francesa, criados em Barcelona. Trata-se de um grupo de homens que em travesti brincam com a dança (no feminino) e, sobretudo, com os chichés do bailado clássico. Mas, a verdade é que o experiente bailarino e coreógrafo francês, Lafeuille, foi muito além do que é o trabalho daquele famoso grupo norte-americano, fundado em 1974, e conhecido por espalhar gargalhas e bom humor pelos palcos dos quatro cantos do Mundo.
O título de espectáculo, Tutu, criado em 2016, remete-nos para uma das mais emblemáticas imagens associadas à etérea bailarina de saia longa – quase a tocar os tornozelos – constituída por várias camadas de tule rosa transparente (originalmente em musselina de seda) franzidas e saídas de um apertado corpete. A sua forma cria um efeito de leveza, suspensão e delicadeza nas artistas e o seu nome deriva de um jogo de palavras de cariz grosseiro, panpan tutu, utilizado pelos dandies dos teatros parisienses em relação às bailarinas da época. O traje começou a ser utilizado, especificamente, no chamado período romântico – antes de meados do século dezanove – conferindo à mulher uma silhueta em forma de sino, que a sociedade europeia rapidamente adoptou. Com a evolução das mentalidades, as bailarinas em menos de meio século foram encurtando as saias, inicialmente em forma de campainha, até chegar àquilo a que hoje se chama o tutu-prateleira. Também conhecido por tutu italiano. Trata-se de uma sobreposição de saias curtas e rígidas, mais ou menos planas, por vezes dispostas em forma de pétalas um pouco abaixo da cintura da bailarina, e mais ou menos decorada com materiais em relevo e brilhantes. Ora esse é o primeiro fato que a supracitada figura negra enverga no centro do palco, bem iluminada, como se se tratasse de um rodopiante abat-jour de um qualquer candeeiro eléctrico. O tutu, genericamente falando, é também o padrão de que parte o criativo vestuário da obra, assumindo algumas variações pitorescas, mas, frequentemente desmasculinizando os corpos nas sucessivas vinhetas dançadas.
Para além das inevitáveis paródias a alguns dos highlights da dança clássica – designadamente o solo do primeiro acto da Princesa Aurora e o dueto do segundo, também de A Bela Adormecida, e os cignettes do Lago dos Cisnes – a Chicos Mambo Company, também interpretou, com verve e humor, danças de salão, dança moderna e contemporânea e, mesmo, uma conseguida e vistosa paródia (abrilhantada com os respectivos aparelhos) aos excessos da ginástica rítmica feminina.
Se o quarteto dos patos dançantes – inspirado na música de Tchaikovski – é uma verdadeira maravilha para os olhos das crianças (bem como dos adultos presentes), o solo intitulado A Morte do Cisne – notabilizado por Anna Pavlova pelo Mundo fora no primeiro quartel do século XX – foi, provavelmente, o momento mais impactante do show. Já que a música de Camille Saint-Saëns, forneceu o suporte a uma belíssima dança toda sur place, de que foi difícil apartar o olhar. O talentoso intérprete convoca apenas os membros superiores e, de costas, dá um impressionante show de anatomia humana apenas ondulando os braços – que se tornam quase líquidos – e, em simultâneo, reverberando a sua impressionante musculatura escapular. Tutu vive essencialmente de meia dúzia de excelentes intérpretes – mais um secundário escondido atrás de uma máscara – possuidores de técnicas de dança sólidas e de um relevante poder histriónico. Tão bons são os bailarinos-actores que até convocam a estética e a obra da coreógrafa alemã, Pina Bausch. Pena foi que a dança-teatro das “mulheres descabeladas” fosse tão longa, ao contrário de uma anterior, estruturada sobre o repetitivo Bolero de Maurice Ravel, que acabou por não atingir aquele ponto de “esperada” magia.
Com a utilização de técnicas teatrais como a do Teatro Negro de Praga (com figuras de negro invisíveis que suportam e fazem voar os protagonistas) os artistas, por vezes, conseguem criar a sensação no público que está a assistir de uma viagem de desenhos animados vista no cinema ou na televisão. A verdade é que os Mambo Chicos (ou Chicos Mambo) dançam com um ritmo alucinante e, certamente, mudam de fatos atrás das cortinas com uma rapidez inimaginável.
Em resumo, trata-se de um espectáculo extremamente eclético e apalhaçado que, indubitavelmente, pretende chegar a todo o tipo de audiências. Mas se alegria é o primeiro nome de Tutu, o seu apelido é, sem dúvida, evasão.
Ao fim de hora e meia de uma irrequieta aventura terpsicoreana, e depois dos bailarinos deixarem o palco por entre catadupas de aplausos, o coreógrafo, sozinho em cena e para surpresa de todos, ao som da famosa e empolgante Valsa nº 2 de Dmitri Shostakovitch – roubada ao filme de Visconti, O Leopardo – pede ao público (que já se encontra de pé) que agite os braços, abane a cabeça, sorria, cante e dance… e, sobretudo, sinta o prazer de prolongar na plateia a energia e o gosto de fazer o corpo se libertar dos seus próprios espartilhos. Curiosamente (ainda nos tempos que correm) foi o público feminino o que mais soltou o espírito e deu asas a um, quantas vezes necessário, desprendimento.
Philippe Lafeuille, que dançou com Joseph Rusillo, Peter Goss, Rudolfo Nureyev e Madonna, entre outros, sabe muito bem como coreografar traquinices e, sobretudo, como utilizar toda a espécie de truques para animar as hostes. E, com uma ideia simples e muito eficaz, manda o público para casa feliz e, seguramente, cheio de vontade de ir dançando pela calçada acima ou abaixo do antigo Passeio Público.
AL
Fotos: Michel Cavalca