(Texto, inicialmente, publicado nos Anais do IV Congresso da ABRACE- Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cénicas, Editora UNIRIO, em Maio de 2006)
Na construção da dança moderna, as rupturas estabelecem-se mediante cortes profundos com o que anteriormente se praticava e se usufruía como “arte da dança”.
Estrutura-se uma tradição de ruptura (Paz, 1988), tradição paradoxal, posto que construída de descontinuidades e não da transmissão de padrões, em fluxos sem interrupções fundamentais.
Sendo um moderno que, em todo momento, funda sua própria tradição, poder-se-ia dizer que uma de suas características é a auto-suficiência, ainda que após a ruptura, se estabeleça uma ligação com conteúdos de outros tempos e espaços que não o presente, momento em que se processa e irrompe a obra moderna.
Isadora Duncan relaciona-se com um passado nebuloso da antiguidade grega e depois com a Natureza; Martha Graham com trajetórias heróicas de mulheres míticas do planeta; Mikhail Fokine com um bailado romântico primitivo e, no Brasil, Klauss Vianna com um “verdadeiro balé”, que não se nega, mas que se apreende como um instrumento de modernização, que há de ser fruto, sobretudo, de uma ligação original com a dança de cada um, ainda encapuzada, a ser desvendada por improvisações, onde ossos, músculos e nervos guiam as direções e áleas de cada descoberta.
O relacionamento com estes conteúdos, impondo-se imediatamente após a ruptura com o anteriormente acontecido, pressupõe processos que se dêem em função de um novo perfil de intérprete, coreógrafo, cenógrafo, director de companhia, mas também a partir de uma nova noção do que seja o público de uma arte que se quer moderna, no decorrer de um século no qual a fruição do espetáculo arte passa a ser matizado por aspectos de uma economia industrial mutante (Rouanet, 1987), numa sociedade, crescentemente, de consumo. No final do século XX e nos primeiros anos deste século XXI, tais circunstâncias colocam o espectáculo de dança como alvo de dupla caracterização: ora nos referimos a ele como um bem cultural, a ser fruído juntamente com a intensa trama simbólica que subjaz à sua construção, ora como produto, a ser consumido rápida e inconsequentemente como tantos outros.
De qualquer maneira, nos dois casos, a discussão em torno dos pólos de recepção da obra, neste caso, o público da dança moderna, é recorrente desde sempre na história da linguagem. Os modernos artistas da dança na sua ruptura, recuperação e processamento apaixonado de hipóteses, têm em mente a peremptória urgência da circulação potente dos conteúdos por eles trabalhados, certeza do necessário fluxo entre artistas e seus públicos, estabelecendo-se reflexões e estratégias de dramaturgia em dança, exaustivamente grafadas a partir da modernidade. Ainda que documentadas em certas ocasiões precedentes, na dança teatral do Ocidente, sobretudo no século XVIII (Monteiro,1998).
Nestas dramaturgias ou reflexões com ela relacionadas – textos, missivas, manifestos, artigos – metáforas verbais tradutoras de metáforas corporais para um “mundo novo, isto é, moderno”, encontra-se explícito o desejo de comunicar conteúdos a partir dos quais se constroem as “novas tradições” do “moderno”.
Os públicos fazem parte integrante e essencial da construção moderna, ainda que tal traço de origem esteja presente em grande parte da trajetória da linguagem, como quando, no caso do desenvolvimento do bailado clássico, a dança se descola do baile da corte, para, através de estratégias híbridas, iniciar a construção de uma identidade que a caracterize como arte autónoma.
Compartilhar a descoberta de um “original”, porque ligado a um conteúdo inaugural de origem, seja a estrutura íntima de uma dança em si (suas linhas de força, seus apoios, as alavancas de peso que fazem mover os corpos de seus intérpretes), seja a estrutura metafórica de um tema comum entre aqueles que dançam e assistem a um espetáculo, indivíduos de um mesmo tempo-espaço, e, por consequência, de uma história/cultura, é meta, desejo e proposta programática, quase manifesto político, de artistas de um primeiro e segundo momentos do moderno, espraiando-se para alguns dos pós-modernos (década de sessenta e setenta) e contemporâneos dos anos 90.
Na modernidade, os conteúdos “corpóreo-metafóricos” que se quer circular, partem de um artista cuja individualização e expressão no mundo, são fundamentais, e suas obras, concretização de pressupostos a partir de um “eu”, pertença de um indivíduo que toma em mãos seu corpo-destino individual para torná-lo ferramenta de comunicação corporal humana.
A comunicação que se estabelece é muitas vezes de profunda intimidade, revelando a dança certas questões nossas, de homens e mulheres contemporâneos, através de corpos em corpos em movimento.
A ligação entre artistas e públicos concretizada pela circulação de conteúdos de natureza visual, sonora e verbal (Santaella, 2001) estabelece-se por obras herdeiras da “tradição da ruptura”, que ao longo do século XX, vai informar um somatório de processos e sistemas criativos do moderno e do pós-moderno. Estabelecendo-se um imperioso “estado de ruptura” pelo qual navegam, muitas vezes, em níveis abaixo do mar, os artistas contemporâneos.
Para criar, mantêm-se imersos numa ruptura constante, grafada em carne viva ou somente nos textos dos programas, neste caso, a expressão dos cortes é mais referenciada na intencionalidade de se estar compassado com seu tempo do que em processos de árdua investigação criativa.
O que aqui se denomina “estado de ruptura” é tão intensamente conjugado, que por vezes encontramos expressões, como a célebre “desconstrução de um corpo”, empregadas com liberdade extrema. Dir-se-ia, mesmo, liberdade poética, já que se sabe que, biologicamente, os processos de desconstrução corporal estão real e somente ligados a factores genéticos ou a certos traumas neuromusculares.
A criação manifestada a partir deste “estado de ruptura”, que irriga de novidades viscerais, faz com que grande parte da criação do moderno/contemporâneo, passe a estabelecer, mediante uma estreita ligação com a ruptura, uma descompassada comunicação entre artistas e a maior parte dos públicos de dança.
Com isto, uma das programáticas intenções da modernidade, o estabelecimento de circuitos dramatúrgicos que promovam um contacto intenso e crescente entre criadores e plateias, dá lugar a um programa da “ruptura em si”, onde o estranhamento poético, o grotescamente belo, a enunciação das razões e estruturas da arte se apresentam desencarnados das suas matrizes formadoras, promovendo-se uma árida situação de distanciamento, isolamento de pólos em margens distintas, muitas vezes quase bloqueio, entre emissores e receptores da arte da dança.
A partir do desenvolvimento desta situação, além de consequências distintas, testemunhamos um resultado imediato: o crescente desinteresse pela dança contemporânea, encarada como arte hermética (Guy, 1991 e Navas, 1999), panorama de tintas reforçadas pelo aumento de criações carimbadas com o selo de “intelectual”, como se a dança também não fosse, per si e inexoravelmente, uma actividade também intelectual. Além disto, a aposição de tal selo, contribui enormemente para reforçar a clássica e sempre revivida cisão “corpo e mente”, atual e cientificamente insustentável. Circunstância, aliás, há muito conhecida dos grandes mestres da dança de todos os tempos, sobretudo os modernos.
A tradição da ruptura, que mantém os artistas modernos num solitário, profícuo e pungente “estado de ruptura”, migra para a clivagem de comunicação de certos conteúdos dramatúrgicos entre platéias e artistas, repetindo-se os padrões que reforçam distâncias inclusive entre os criadores. Ainda que, dentre eles, existam aqueles que, de facto, trabalham para nos lançar desesperadas imagens tradutoras de lacunas da comunicação humana, numa sociedade onde a solidão (internética, sensual, económica e humana) é um facto planetário em países cada vez mais urbanizados.
Como consequências adicionais deste estado de coisas, tentativas de uma ligação forte e original são tecidas, pelo estabelecimento de renovados circuitos de comunicação: novos formatos de espectáculos (tempo e espaços diferenciados de apresentação), pesquisas radicais de retorno às origens e do trânsito entre estas e a contemporaneidade (Navas, 2003), ações voltadas para indivíduos em situação de risco e para todo o tipo de grupos sociais que se acredita desintegrados ou excluídos dos pólos de maior concentração de bens e estruturas do capital financeiro e cultural.
Presencia-se o desenvolvimento de uma onda de inclusão de conteúdos, assuntos, públicos, populações à margem dos sistemas de criação, produção, difusão e consumo cultural, testemunhando-se um desejo de inclusão de todos em todas as partes, o que muitas vezes ocasiona situações onde a arte se transforma num instrumento ora essencial, ora descartável. Agigantando-se, de maneira muitas vezes artificial, a contundência de seu impacto, a curto prazo, em detrimento dos seus efeitos a médio e longo prazo, de difícil contabilização, mas de grande importância na elevação dos patamares da qualidade das relações humanas, nos circuitos estéticos e éticos da espécie.
Na busca desta utopia artística frequentemente subjaz um certo assistencialismo cultural, cujas resultados requererão estudos mais abrangentes num futuro próximo. Indica-se que nos julgamentos advindos das conclusões obtidas seja levado em conta o fato de que, com excepções, estas vias vêm sendo construídas através de atitudes de artistas face a desafios de uma ligação original ao intenso período onde a componente crítica da modernidade, estruturadora do “estado de ruptura”, teve prevalência sobre o seu paradoxal parceiro, outro componente fundador, que se constitui do componente da paixão (Paz,1988). Talvez seja este o motor que permita que, às suas funções criadoras em si, coreógrafos, professores e bailarinos, agreguem funções de especialíssimos agentes culturais, constituindo-se em vetores de diferentes estratégias de inclusão em arte.
Cássia Navas
Professora Doutora em Dança (pelo Departamento de Artes Corporais/Instituto de Artes/UNICAMP, Brasil) e Consultora do TEATRO DE DANÇA, da Secretaria de Estado da Cultura, APAA, de São Paulo – Brasil.
Bibliografia
AUSLANDER, Paul.. Presence and resistence, post-modernism and cultural politics in contemporary american performance. Michigan: The University of Michigan, 1997
GUY, Jean-Michel. Les Publics de la danse. Paris: La Documentation Française, 1991
MONTEIRO, Mariana. Noverre: cartas sobre a dança. São Paulo: Edusp, 1998
NAVAS, Cássia. Dança e Mundialização: políticas de cultura no eixo Brasil-França. São Paulo: Hucitec, 1999
NAVAS, Cássia. Dança brasileira no final do século XX. In Dicionário SESC, A Linguagem da Cultura. Organização Newton Cunha. São Paulo: Perspectiva/SESC São Paulo, 2003
PAZ, Octávio. Os Filhos do Barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984
ROUANET, Sérgio. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987
SANTAELLA, Maria Lúcia. Matrizes da linguagem e do pensamento. São Paulo: Iluminuras, 2001