As primeiras gerações de artistas do século XX, encontraram novas formas de expressão que quebraram uma estética passada e estabeleceram relações privilegiadas com a conceptualização da arte e, consequentemente, da dança.
Dentro destas novas expressões / vanguardas do início do século passado, tem lugar um primeiro “modernismo” na dança pela mão de Loïe Fuller, Isadora Duncan, e Ruth St. Dennis, três bailarinas americanas que, juntamente com a canadiana Maude Allan, originam um ruptura irreversível na arte de Terpsícore. Este passou, basicamente, pelo reconhecimento do valor expresso do corpo através da dança (numa concepção libertadora do corpo), pela criação de novas técnicas e invenção de novos vocabulários que ajudaram a dança a superar, então, a sua função de puro entretimento.
Um segundo “modernismo”, não menos relevante, deu-se com os Ballets Russes quando não só se radicalizaram as premissas americanas do primeiro (modernismo), como se consubstanciou a dança numa prática artística autónoma e maior. As obras da companhia de Diaguilev romperam com as convenções coreográficas e dramáticas em diferentes graus, nomeadamente na adopção do bailado num acto como formato básico da companhia, na coerência formal e dramática, no estilo do movimento de uma obra que reflectia o tema e não o inverso e finalmente na diversidade coreográfica que levou a uma reinterpretação do corpo. Isto significou que, com uma nova linguagem cénica, a companhia russa pôde realizar uma nova poética, quebrando algumas tradições. Como refere Manuel de Sousa Pinto, no seu livro Danças e bailados “os bailados russos marcaram, com efeito, a mais audaciosa, fecunda e completa tentativa de modernização teatral: uma verdadeira revolução nos processos de cena”.
Até então, a produção balética estava confinada a um modelo rígido onde cada secção era entregue a um conjunto de artistas que não dialogavam entre si: os pintores de cena faziam o seu trabalho, enquanto que o vestuário era idealizado por outro profissional e assim sucessivamente. Esta maneira de trabalhar não era exclusiva na Rússia, existia por toda a Europa e era um fenómeno extensível não só ao teatro, como à ópera e ao music-hall. Era, obviamente, muito difícil conseguir uma coerência plástica da uma qualquer obra e os Ballets Russes ao quebrarem esta tradição, converteram a coerência artística numa característica própria de todas as suas produções, ou seja, fizeram convergir cenários, figurinos, enredo, música e coreografia sob um denominador comum: o bailado.
Se esta concentração constitui, eventualmente, a primeira característica das suas obras, uma segunda delineia-se consequentemente: a diversidade de influências artísticas espelharam-se na arte cénica da dança como uma nova “vanguarda”.
Neste âmbito, os Ballets Russes constituíram-se como a primeira companhia privada a singrar no mundo pois, historicamente, o bailado clássico sempre se desenvolvera sob alçada e protecção dos reis, czares e patronos aristocratas que despendiam as suas fortunas ao serviço de nobre arte. Deste modo foram os russos os primeiros a empreender com tal vigor uma nova dinâmica que consolidou o seu lugar na história, como precursores de uma arte emancipada. Entre 1909 e 1929, viabilizou-se a criação da primeira companhia europeia de bailado moderno, em torno do qual se reuniram intelectuais e artistas modernistas russos e franceses, numa aproximação até então desconhecida. Porque de facto, não foi exactamente a dança russa que entusiasmou o Mundo, mas sim a arte dos bailarinos russos posta ao serviço de uma nova concepção cénica que o conquistou, que impressionou públicos e a crítica especializada com o movimento, a cor e a emoção de artistas debaixo de uma unidade de espectáculo até então nunca vista.
Os Ballets Russes começaram por designar as possibilidades de formação de uma consciência artística autónoma, que acabou por interrogar as próprias capacidades da arte na sua relação com a contemporaneidade.
Foi, de facto, esta companhia que impôs novos critérios no imperativo de uma nova sensibilidade, de uma nova realidade; a dança passara a existir como arte independente e uma nova ordem de valores surgirá. A temática deixara de ser o mais importante, uma vez que o que se tornara essencial era o “tom”, o tratamento plástico e estético que se dava à obra artística. Para isso o criador dos Ballets Russes rodeou-se de todo um conjunto de artistas que em diversos campos trabalharam para um objectivo comum. Figurinistas, cenógrafos, coreógrafos, libretistas, compositores e outros, juntaram-se na construção da obra de “arte total”, gizada por Wagner mas só efectivada com os Ballets Russes. Assim, é pertinente enunciar algumas das mais significantes parcerias e/ou encomendas que os Ballets Russes proveram ao longo dos seus vinte anos de existência.
A nível coreográfico, os Ballets Russes deram ao mundo um punhado de coreógrafos maiores que iriam produzir uma arte balética de vanguarda: Fokine, Nijinsky, Massine, Nijinska, Lifar e Balanchine.
A nível musical, um rol de compositores, escreveu propositadamente para as produções da companhia: Stravinsky, Ravel, Debussy, Satie, Falla, Milhaud e Prokofiev, entre outros.
A nível de cenografia e figurinos, um conjunto notável de artistas criou para os Ballets Russes: Bakst, Benois, Picasso, Matisse, de Chirico, Ernst, Miró, Delaunay, Gontcharova e Chanel, só para enumerar alguns.
Toda uma panóplia de artistas e intelectuais juntou-se para produzir criações maiores: Jean Cocteau, Auguste Rodin, Odilon Redon, Marcel Proust, Jean-Louis Vaudoyer, Reynaldo Hahn, Gérard d´Houville, Jacques-Emile Blanche, Robert Brussel e José Maria Sert que se interessaram pelo trabalho de Diaghilev e despertaram os meios literários e artísticos.
Em vinte anos a companhia criou cerca de sessenta obras onde tradição e inovação se aliaram de forma brilhante e eficaz. O seu legado mais pertinente, como atrás se mencionou, assenta na reunião de várias artes para a produção de uma obra de arte singular, criativa e ímpar que marca a entrada da dança numa actualidade que urgia efectivar, impondo a arte de Terpsícore como arte maior.
O grande desfile artístico dos Ballets Russes, não só cristalizou a escola clássica com a ajuda das vanguardas, mas transformaram-na numa gloriosa expressão europeia total. Sob um olhar retrospectivo, foi toda a redefinição de uma arte, doravante assente em premissas que incorporavam não só o bailado mas também as artes plásticas, a música e a coreografia, na produção de uma obra única, necessariamente moderna.
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