É realmente curioso como, nos tempos de hoje, um coreógrafo – ou, no caso, uma dupla de criadores – percepciona uma fotografia, um conjunto de imagens ou a obra de um artista famoso como Henri Cartier-Bresson (1908-2004) e transpõe essas impressões/ estímulos/ formas, para movimento. António Cabrita, um bailarino-coreógrafo descendente de um grande fotografo português, Augusto Cabrita (1923-1993) e São Castro coreografaram uma peça tensa, espessa, algo misteriosa e descarnada, a preto-e-branco, com uma estrutura intrigante, estreada na Culturgest, em Lisboa.
Segundo se afirma na nota do programa, a obra do fotografo “clássico” francês serviu de mote a “nível coreográfico e dramatúrgico” para “Rule of Thirds”. Título que tanto podia ser este como outro qualquer, em português francês ou chinês, já que a expressão se refere a uma regra a aplicar na composição fotográfica, de filmes ou de pinturas de paisagens! Quanto ao seu conteúdo, numa época em que o movimento e as peças se parecem todas muito umas com as outras e frequentemente se revelam algo enfadonhas, só com uma infinita dose de imaginação da parte dos espectadores, os mesmos poderão associar este trabalho ao mundo daquele a quem chamaram o “pai do fotojornalismo”.
Juntamente com dois excelentes jovens bailarinos, Margarida Belo Costa e Luis Malaquias (da Companhia de Dança de Almada) a dupla supracitada partilha solos, duetos e quartetos em cena. Alguns na penumbra outros apenas iluminados por dois projectores móveis que os artistas manuseiam em palco.
Se as questões que esta obra levanta quanto ao título e conteúdo podem mesmo ser atenuadas perante o resultado final, a principal certeza é que a interpretação da peça é consistente, meticulosa e apaixonada. O quarteto exibe uma qualidade de movimento relevante e, por vezes, magnética. Sendo que a gestualidade feminina consegue bater a inesperada amenidade do trabalho dos dois homens.
Ainda que “Rule of Thirds” fosse inspirada em trabalhos de Joshua Benoliel, Gérard Castello-Lopes ou Eduardo Gageiro, tudo leva a crer que o resultado poderia ter sido exatamente o mesmo. O bailado, que dura mais de uma hora e é vestido a cinza – agudizando o clima sombrio e obsessivo de toda a peça – vive de uma série de encadeamentos de movimento, alguns repetitivos e outros oferecidos por blocos independentes, mas sem jamais mostrarem qualquer laivo de subversão ou o inusitado impacto que uma simples foto quantas vezes encerra. Os quatro artistas gerem com autoridade, foco e sensibilidade um espaço escuro, vazio e desolador – sem qualquer cenografia e luzes que apenas parecem acentuar uma certa forma de neutralidade – sem nunca saírem de uma zona de enorme ambiguidade. O que, naturalmente, frustra qualquer tentativa de narrativa aos olhos e nas cabeça dos espectadores.
A maioria das sequências coreográficas do trabalho em questão apresentam-se prenhes de tensão. Por vezes algo poéticas e sempre bem recortadas no espaço. Quanto ao tempo, esse corre em oposição à velocidade com que os grandes fotógrafos dominam com habilidade e maestria os obturadores das suas preciosas máquinas fotográficas.
Fotos: Carlos Pereira