Depois de uma noite de dança assinada por Tânia Carvalho, no início do ano, e outra pela alemã Sasha Waltz, na época festiva do 25 de Abril, a terceira aposta para 2018 de Paulo Ribeiro, director artístico da Companhia Nacional de Bailado (CNB) recaiu em mais uma mulher, desta vez a italiana Ambra Senatore.
Da sua biografia sabe-se que nasceu em Turim em 76 e foi professora de História da Dança. É coreógrafa e “performer”, e, mais recentemente – depois de colaborações com coreógrafos franceses e italianos – directora do Centro Coreográfico Nacional de Nantes (França).
Não sendo um Preljocaj ou um Decouflé, esta aposta da CNB em alguém que não é conhecida no nosso país nem tem muito “chamamento”, uma vez mais, não levou ao Teatro Camões o público suficiente que justifique os avultados gastos com um agrupamento de âmbito nacional. É que se este tipo de reportório (que, na verdadeira acepção da palavra, não existe como um corpo de obras reconhecível e representativo da companhia e da cultura portuguesa) já não atrai o espectador que, no passado, acarinhava e enchia os espectáculos da CNB nos três teatros da Baixa Lisboeta, não pode ser mais prejudicial para os bailarinos que ainda conseguem dançar, de vez em quando, um bailado clássico com um mínimo de dignidade.
Há muito que a CNB se tem vindo a afundar em obras de baixa qualidade que pouca gente quer ver e num teatro que, ainda por cima, fica fora de mão para quem não vive em Moscavide. Certamente por isso – e ao contrário de uma companhia exemplar e com a mesma idade da CNB, o Ballet Nacional de Espanha que corre o seu país e o Mundo – hoje nem um turista “acidental” italiano se interessa pela dança em que o Estado despeja avultadas verbas para resultados tão pouco entusiasmantes.
O programa, estreado a 18 de Maio, foi composto por duas obras, “Passo” (de 2010) e uma criação para 18 bailarinos da CNB, intitulada “Tocata e Fuga”.
Em comum, ambas têm a duração (quase uma hora cada), um certo non sense e um efectivo gosto pelo movimento do quotidiano.
“Passo” começa com um mulher (Henriett Ventura) em cena de vestido azulado e cabeleira (postiça) negra a esboçar movimentos e caretas e alguns “gags”, para chamar a atenção do público. Depois, um a um, juntam-se mais duas bailarinas (Irina Oliveira e Marta Sobreira) e dois bailarinos (Gonçalo Andrade e Ricardo Limão), vestidos exactamente do mesmo modo. Com umas partes de corpos a aparecer e a desaparecer nos bastidores e uns braços (de manequim) a entrarem em cena, criou-se uma relação mais ou menos cúmplice entre os artistas que se movimentam bastante e utilizam muita mímica. Apesar de parecer ser uma peça para mulheres, os dois rapazes em travesti acabam por chamar a si a atenção, sobretudo quando um deles vai à plateia buscar algumas peças de roupa e um saco, estrategicamente colocados na posse de colegas de trabalho. No palco, um extintor vermelho, uma garrafa encarnada e uma passadeira da mesma côr, contrastam com a monocromia dos vestidos curtos e sem mangas. As cinco garçonettes, todas muito camp, parecem movidas por uma banda sonora brincalhona saída de um filme de Federico Fellini, com uma particular e descontraída ironia. Todavia, a coreógrafa usa e abusa dos silêncios, tornando por vezes a peça um pouco arrastada. Os cinco artistas, curiosamente, fazem muitos movimentos com as mãos, algumas vezes na cabeça, e dançam com as ancas e os ombros descontraídos. Porém, no final, é difícil perceber onde a peça acaba e onde começa o sentido deste jogo que fez saltar cabeleiras e produziu repetidas quedas e saltos, numa espécie de longo exercício de ginástica pedestre e comédia muda que apenas fez rir um ou outro espectador de riso mais solto.
A segunda dança, que utiliza um significativo grupo, com alguns bailarinos mais maduros ao lado de colegas mais jovens, parece bem mais interessante no início pois começa com filas de pessoas em trajes de rua a cruzar o palco a caminhar ou em corridas na diagonal e, posteriormente, a desenvolver algum tipo de relacionamentos espaciais entre todos eles. Os artistas, sempre muito soltos e parecendo manter uma certa individualidade, agrupam-se e libertam-se de conjuntos muito variáveis e, de um modo quase aleatório, vão percorrendo caminhos desencontrados. Por vezes, os citados grupos agem de modo contrapontual tornando mais expansivo um tipo de movimento que de original ou criativo pouco tem.
A banda sonora de “Tocata e Fuga” – que nada tem a ver com a peça organística de Bach – é variada e nela até aparece um excerto do poema sinfónico de Richard Strauss, “Assim falava Zaratrusta”. Não se sabe se para dar um ar monumental a uma proposta de movimento rasteiro e demasiado trivial ou para homenagear a grande música erudita.
Esta é mais uma obra que, provavelmente, poucos lembrarão ao deixar o Teatro Camões pois tudo parece tão “improvisado”, nonchalant e “doméstico”, que pode ter alguma graça passageira. Porém, faz perder o sentido de uma dança com uma matriz duradoura, com conteúdo e peso, justamente a que deve ser prestada pelo chamado “serviço público”.
Como nota de rodapé, fica a referência ao facto inédito – na história de quatro décadas da CNB – se ter juntado em palco um pai e uma filha na mesma peça, Brent e Beatriz Williamson, para além da filha de um antigo elemento da companhia, a jovem Patrícia Main.
Fotos: Bruno Simão