Era esperada com alguma expectativa a nova (e relativamente grande) produção da Companhia de Olga Roriz/ Centro Cultural de Belém (CCB) que envolvia duas peças, uma musical e outra coreográfica.
Durante muito tempo podia dizer-se que, para os bailarinos, o desafio “sagração” quase podia fazer um profissional. A complexidade e duração da partitura – mesmo se o movimento em presença não fosse particularmente exigente – era, desde logo, um patamar difícil de ultrapassar.
Por outro lado, poder-se á afirmar, sem quaisquer dúvidas, que, para quase todos os coreógrafos que embarcam nessa aventura – mesmo aqueles que, hoje, se inclinam para a “não dança” – “A Sagração da Primavera” (com a sua poderosa, esmagadora e enfeitiçante música) tem sido sempre uma espécie de teste, em “fim de linha”.
Certamente por tudo isso, na grande maioria das companhias ditas de reportório, encontramos várias versões desta magnífica e histórica obra.
Nas principais companhias de dança portuguesas podemos contar duas, no (extinto) Ballet Gulbenkian (1961-2005), a do francês Joseph Russillo (1983) e a da canadiana Marie Chouinard (2003) e mais outras duas na Companhia Nacional de Bailado (CNB) – uma coreografada por Carlos Trincheiras (1984) e a remontagem de Milicent Hodson, segundo o original de Vaslav Nijinsky, remontada em 1994.
Desde o dia 29 de Maio de 2010, passados 97 anos sobre a sua criação no Théâtre des Champs Élysées em Paris, temos mais duas. A CNB contratou o jovem coreógrafo espanhol Cayetano de Soto para desenvolver um trabalho que utilizasse um amplo grupo de bailarinos do seu imenso elenco e Olga Roriz mostrou, em estreia, no CCB, a sua versão da obra-prima de Stravinsky, protagonizada pela sua companhia, à qual se juntaram quase uma vintena de bailarinos “free lance”.
A conceituada artista já tinha feito saber que se queria afastar do “fantasma Bausch”, já que, para um enorme número de apreciadores de dança, a versão do Tanztheater de Wuppertal continua a ser a mais bela e espantosa de todas as que apareceram depois de Nijinsky, que tanto escândalo fez em 1913.
No caso presente, as cortinas abrem-se sobre um palco nu com um homem de camisa branca e calças negras atrás de um monte de serradura iluminado verticalmente. Pouco a pouco nove homens trazem sacos que com mais serradura que vazam sobre o palco, que uma dezena de mulheres, posteriormente, se encarregam de espalhar pelo solo com movimentos soltos e agressivos que vão aumentando de intensidade.
Entre os machos, um ”solitário” (o Sábio, Jácome Filipe) dança como se se tratasse de uma sombra perdida entre as gentes. Com vestidos de várias cores e cabelos selvagens, uma das bailarinas, Marta Lobato de Faria (a Eleita) sobressai do conjunto enquanto que uma ténue cortina de chuva cai sobre os bailarinos. Mais uma suicida que dança até ao limite das suas forças, do que uma personagem do passado, escolhida pelo grupo para ser sacrificada, a mulher transforma a sua dança numa peça de resistência, lançando-se compulsivamente para o chão durante os últimos minutos de música, ao mesmo tempo que é observada pelos outros.
Muito bem recebidos pelo público, “Antes da Primavera” de Luís Tinoco (um curto apontamento musical interpretado pela Orchestrutopica, sob a direcção de Cesário Costa, que também liderou a Metropolitana de Lisboa a seguir) e “A Sagração” de Roriz, constituíram uma dupla de peso.
O bailado, contudo, tem os seus melhores momentos quando a “multidão” se levanta do chão e volta a cair em sequências canónicas, como ondas que se aproximam da praia e se desfazem na areia.
Não suficientemente divorciado da “fórmula Bausch”, a este trabalho falta-lhe, na recta final uma pequena faísca para ultrapassar com genialidade o tempo de um longo solo em que bailarinos e espectadores se tornam testemunhas impotentes da escolha de uma jovem que se auto-sacrifica até se imobilizar, como morta, no solo.
Para alguns criadores a "Sagração" tornou-se mais que um desejo, mais que um destino… uma verdadeira obsessão.
Para Olga Roriz, a “sua” Sagração, que deixa transparecer um pouco desse encanto e magia, encerra um mundo muito pessoal num trabalho maduro e visualmente estimulante.