A programação de certos teatros que vivem do total ou parcial apoio do Estado (ou dos municípios) frequentemente entregue a indivíduos completamente amadores – quantas vezes arrivistas e de gosto mais que duvidoso -, nos tempos que correm, pode ser de tal modo indigente e desinteressante que quando se vislumbra o título de uma peça (histórica) de referência, em cartaz, até apetece comprar bilhetes.
Mas como nem tudo o que brilha é ouro e nem sempre tal é sinónimo de qualidade, convém ter um pouco de siso e alguma prudência na carteira. Pois quando se trata de um desagradável equívoco ficamos a perder duplamente com o flop, quer seja do que sai dos bolsos quer no que se evapora anualmente através dos formulários do IRS.
Quando se soube que o lisboeta Teatro Praga – não confundir com o maravilhoso, sonhador e movimentado Teatro Negro de Praga, ex-libris da capital da República Checa – ia estrear, a 17 de Junho, dia de aniversário de Igor Stravinski, uma peça com o título de um bailado poderoso e singular muito já remexido, A Sagração da Primavera (SP), qualquer pessoa com o mínimo de sensatez teria, pelo menos, recorrido à Internet ou passado pelo Centro Cultural de Belém (CCB) para verificar in loco a publicidade ao evento. Apesar da pouca informação contida num imenso mupi na fachada principal do edifício, quatro figuras camp, entre nuvens, prometiam algo entre os Ballets Trocadero de Monte Carlo e a Moda Lisboa. Com um cheirinho a Circo Cardinalli tendo a gloriosa música de Stravinski como pretexto.
Os que gastaram 30 euros no bilhete – que um dos actores, cujo salário advém do subsídio da Direccão-Geral das Artes, se fartou de parodiar – podem dividir-se em três grupos: os que saíram a meio (e foram poucos), os que ficaram até ao fim e se fartaram de aplaudir (e foram quase todos) e os que acham que a SP em causa é “uma coisa com a qual ou sem a qual o mundo fica tal e qual”.
Desde logo, duas questões essenciais ficaram no ar: quantos voltariam a ver esta peça – concedendo-lhe assim o estatuto de obra de reportório, ao invés de mero acidente de percurso de uma companhia do género “tico tico no fubá, pica aqui pica acolá” – ou quantos acham que toda aquela cenografia e figurinos tão indigestos merecem o dinheiro que custaram para servir de complemento a textos pífios e movimento tão irrelevante?
Porém, só essas duas interrogações já se revelam um “meio triunfo” da “política de públicos” praticada pelo Teatro Praga (TP). Que, alias, é muito explícito nos seus objectivos programáticos – atendendo às criativas e verdadeiras pérolas de ironia, nonchalance e argúcia das notas do programa – ainda que a sustentação do seu trabalho seja pouco mais sólida do que um…. “porque nos apetece”!
Talvez exista um enorme paradoxo nessa matéria – que, certamente, não cabe aqui esmiuçar – mas é de movimento, mais do que texto, ou melhor dizendo, palavreado, que esta Sagração parece querer viver. Socorrendo-se de uma orquestra com dezenas de músicos invisíveis e, deliberadamente, jogados num fosso. E, justamente por isso, provavelmente nunca uma música gravada faria tanto sentido ecoar no Grande Auditório do CCB, já que se o destaque era para a palavra, a palavrinha e o palavrão, quanto ao som… who bothers?
Não será, pois, demais referir que as maiores qualidades desta peça (em homenagem, sabe-se lá a quê !) são, em primeira análise, o desvairo – que pode estar na base de uma boa obra de arte -, o cabotinismo – que pode arruinar qualquer candidatura a obra de arte – e a provocação – que convém alinhar por algum sentido de oportunidade. Quanto ao desdém e ao desejo de borbulhar, esses parecem ser material que também faz parte da própria receita. Resta saber se todos serão, em simultâneo, também os seus maiores defeitos. Tudo leva a crer que tal escolha acaba por se definir, sem grandes questionamentos intelectuais, conforme o espectador se colocar de um ou do outro lado da barricada.
Uma coisa é indiscutível, mais ou menos convincentes como actores ou bailarinos (apenas dois se poderão orgulhar de tal estatuto) os integrantes desta SP formam uma colorida, inclusiva e heterogénea paleta humana e, quase todos, suam as estopinhas em cena.
É claro que a liberdade criativa é sempre bem mais avantajada para quem está de “barriga cheia” (o TP é uma estrutura financiada, provavelmente na totalidade, pelo Governo de Portugal/Direcção-Geral das Artes) podendo, mesmo, tratar-se o “publicuzinho” como uma entidade sem rosto que pouco mais serve do que para aplaudir. Tendo em conta a enorme alegria e acentuada excitação do final do espectáculo, o mesmo alinha de bom grado nesse curioso papel.
Assim sendo, esta SP – como “reminiscência” da pièce de scandale que foi a sua versão original assinada por dois monstros sagrados da cultura russa, Igor Stravinski e Vaslav Nijinski, assenta às mil maravilhas na agenda de um TP que se sente capaz de “trazer História para o palco”, com muito “brasão e pergaminhos”, ainda que, no caso, descarte a vantagem de ter um coreógrafo a zelar pela Dança e, sem pruridos, sugando o trabalho da Orquestra Sinfónica Metropolitana.
A peça, que se supõe concebida como um ritual de renegação, divide-se em três partes distintas: um longo monólogo (com muita palavra e algum nervosismo) protagonizado por um artista que mais parece um vendedor de banha da cobra, um tudo nada caprichoso e algo exibicionista, que debita um longo texto cheio de trejeitos e alusões a “faits divers” de graça discutível, afirmando que estava naquele palco imenso, sem rede, porque… sim. Porque lhe “apetecia” e por mais outras tretas e banalidades. Depois vem uma parte intermédia que começa com uma parada assimétrica de indivíduos mais ou menos excêntricos e barulhentos saídos de um “pão de forma” (carrinha Wolkswagen) que não desdenhariam entrar num dos filmes de Fellini, para fazer um pic-nic em cena. E a qual se traduz em quase uma hora de puro “nonsense” em que desde simulação de sexo a tentativas de dançar, com muita gritaria e impropérios à mistura, há de quase tudo e para todos os gostos. E a terceira e última parte, obviamente a mais esperada, em que se começa a ouvir, timidamente, a voz da orquestra no fosso tentando agigantar a monumental música de Stravinski para a sala. Com os intérpretes a trocar de roupa em cena (quase melhor seria que todos a tivessem mantido) para envergar uns figurinos tipo túnicas e calças largas semitransparentes, de gosto esdruxulo.
Uma vez que da não-coreografia – muito provavelmente baseada em improvisações dos próprios intérpretes – não há nada de verdadeiramente relevante a assinalar (não é bailarino e músico quem quer e, muito menos, coreógrafo e compositor quem acha que pode) vem a talhe de foice referir que o compositor da SP referia que gostava muito de escrever para pequenos conjuntos de câmara pois obrigava-se a concentrar no essencial da música e não no supérfluo. Sem meios para grandes orquestrações, Stravinski apostava numa música pristina e de enorme qualidade, facto que deveria fazer pensar o TP e, eventualmente, seguir-lhe o exemplo.
Alguns defendem que a contemporaneidade não vem assim de tão perto (leia-se actualidade) e que a comédia vem de tão longe como da Grécia antiga. E que o teatro das “diabruras” terá nascido em Portugal no tempo de Gil Vicente. Sabendo-se que os seus autos encerravam uma espécie de “sabedoria da ingenuidade” e, provavelmente, danças orgânicas e até genuinamente portuguesas, por ele coreografadas. Brincar agora, por assim dizer, com a antropófaga partitura stravinskiana só porque sim, pode não ser necessariamente garantia de sucesso.
Não é por acaso que muitas coreografias sobre essa obra-prima da música universal têm claudicado e, menos ainda por acaso, que apenas alguns génios conseguiram a proeza coreográfica de libertar a SG do anátema que foi a sua primeira apresentação ao público no parisiense Théâtre des Champs Elysées. Lembre-se as grandes Pina Bausch e Martha Graham, Maurice Béjart e Glen Tetley e, mesmo, um Carlos Trincheiras, uma Olga Roriz ou um Daniel Cardoso, em Portugal
Tudo leva a crer que, à mingua de um texto cativante e com substância, uma coreografia criativa e apelativa, cenografia e figurinos que prendessem a atenção e interpretações imaculadas, o TP almejasse um pequeno alvoroço (doméstico) que justificasse a sua fama de transgressores intelectuais – lembremos o exemplo da Tropa Fandanga – mas tal não aconteceu. Teatralmente falando, este “evento” coreográfico não terá passado para o TP de um (calculado e inconsequente) fogo de artifício muito pobre em matérias de movimento – a parte musical quase não se envolveu seguindo incólume em paralelo – que motivou longas palmas e muitos bravos. Sagrando a paródia blasé e o irrequieto inconformismo de um colectivo que surge mais apostado na provocação e na efemeridade do que, propriamente, desembocar num caminho que pudesse fazer jus e contraponto à velhinha coreografia de Vaslav Nijinski. Da qual conhecemos fotos – de 1913 – e uma reconstrução algo imperfeita do casal norte-americano Millicent Hodson e Kenneth Archer.
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