Quem aceita o mal sem protestar, coopera com ele.
Martin Luther King Jr.
É comum ouvir-se dizer que “em tempo de guerra não se limpam armas”. E em tempos de pandemia o que se limpa, para além das mãos?
Vamos, então, primeiro às mãos.
Numa altura em que tanto se fala em lavar repetidamente as extremidades dos membros superiores, quase de repente, eles transformaram-se em potenciais agentes contaminadores e, em simultâneo, em armas contra um vírus, para alguns, letal.
Este facto fez-me lembrar, imediatamente, a (não muito amada) coreógrafa norte-americana Anna Sokolow (1910–2000) discípula e bailarina de Martha Graham (1894-1991) no início da companhia desta. Anna tinha um verdadeiro fascínio por mãos e considerava-as um elemento primordial da dança. Dizia ela – que possuia centenas de representações de mãos espalhadas pela sua casa, em forma de desenho, pintura e escultura – que “são belas e misteriosas, mas, acima de tudo, não existem duas iguais à face da terra”. Não foi, pois, por acaso que Déserts, para a partitura homónima do francês Edgar Varèse (1883– 1965) e que é considerada uma das suas obras maiores, juntamente com Rooms, começa, justamente, com um simples movimento de mãos. A referida obra – que tive o privilégio de dançar no Lincoln Centre de Nova Iorque em 1984, sob a direcção da própria coreógrafa, inicia-se com um conjunto de bailarinos sentados no chão (imóveis como dunas) a olhar fixamente as costas das suas mãos assentes no solo. Lentamente, e cada um a seu tempo, vão-nas rodando para fora até desvendarem as palmas em que latejam as linhas das suas vidas.
Mas se Sokolow era um raro exemplo de uma artista sempre preocupada com o enigmático “silêncio das mãos”. A esmagadora maioria dos coreógrafos – e dos próprios bailarinos – são geralmente focados no corpo como um todo e menos nas suas partes. Essa é, sem grandes dúvidas, uma das razões pela qual o ofício de bailarino se afasta do de músico, no sentido em que este pode adquirir o seu instrumento de trabalho pronto e afinado numa qualquer loja. Já o artista da dança – digno desse nome – tem que passar pela demorada e penosa tarefa de, contra ventos e marés, preparar anos a fio o seu próprio instrumento antes de o exibir em cena. Porém, mais sorte ainda, têm os cantores que, facilmente, transportam consigo o seu ganha-pão bem protegido, algures entre os olhos e o peito. Podendo, em qualquer hora e em qualquer lugar, soltar umas boas notas, por vezes, sem uma exaustiva ou sofisticada preparação. É por isso que, em tempos de guerra, os seus cantos podem incitar à vitória ou, mesmo, aliviar na derrota. E quantos músicos, no passado, incorporaram exércitos fazendo rufar ruidosamente tambores em sangrentas batalhas? E, hoje, ainda, alguns marcham garbosos nas paradas militares.
Numa equação muito particular, em que uma das incógnitas se chama COVID-19, onde se colocam, pois, os artistas da dança? Provavelmente no lado mais incómodo da cruz, pela qual quase todos estamos passando.
Em tempos de pandemia, temos visto cantar à janela e ouvido música nos balcões dos prédios, mas quantos bailarinos, afastados do seu habitat natural que são os estúdios de dança, se têm apresentado publicamente? Ainda que lutem por se manter em forma confinados, a sua arte precisa de espaço e, quase sempre, de um estado de espírito de grupo. E não são os bailarinos, indubitavelmente, os artistas que no seu trabalho mantêm um estreito e necessário contacto físico entre eles? Este é, naturalmente, um tempo de grandes desafios para todos os que vêem os seus afinados e milimétricos movimentos, lentamente, abandonarem os seus corpos. E se isso é dramático para os artistas afiliados de companhias estáveis, o que não será para os que trabalham em regime independente ou em pequenas companhias que, provavelmente, ficarão completamente estraçalhadas depois deste interregno. Estamos perante um verdadeiro teste para a perseverança e a força de vontade, tão comum na maioria dos bailarinos, para a resiliência dos professores de dança e do bom senso e capacidade de liderança para diretores artísticos.
DANÇAR EM TEMPO DE (QUE) GUERRA ?
A actual direcção da Companhia Nacional de Bailado (CNB), a mais sólida estrutura de dança portuguesa, quando o ano passado apresentou a público uma das mais descabeladas programações de que há memória – desde logo, incluindo um dos piores Quebra-nozes jamais dançados no país e um programa de dança holandesa para ir representar Portugal numa cidade de província da Bélgica – gizou um programa com o premonitório subtítulo, Dançar em tempo de guerra. Este, constituído por duas obras de qualidade mas que em nada reflectem a nossa dança (Der Grüne Tisch, de Kurt Jooss e Chronicle, de Martha Graham) e que acabou por ser dançado apenas uma vez, no passado dia 11 de Março, no Teatro Camões. Depois do verdadeiro desastre que foi uma suposta “história da dança em capítulos”, que deveria ser um espectáculo didáctico para jovens intitulado Planeta Dança, em Fevereiro (em que fruto de um inominável amadorismo, na véspera teve que ser alterado por, alegadamente, se terem esquecido de pagar os direitos autorais de algumas músicas) não era suposto surgir uma pandemia para voltar a pôr à prova a utilidade para o País desta companhia. E uma vez mais, a CNB errou estrondosamente por ter feito os bailarinos subir a palco quando já havia COVID-19 em Lisboa, pondo em risco público e artistas. Nisso, a Ministra da Cultura – que poderia ter parado tal estreia – foi tão eficaz como a da Saúde que, como é do conhecimento público, só sugeriu o uso de máscaras e luvas quando as pessoas mais sensatas já há muito que, voluntariamente, as utilizavam nas ruas. Cancelados os espectáculos seguintes, os bailarinos, entregues a si mesmos, recolheram a casa sem qualquer planeamento de trabalho, quando existem dois estúdios (e um palco) no Teatro Camões e mais três grandes salas nas antigas instalações da CNB, na Rua Vítor Cordon, que os artistas poderiam utilizar diariamente para manter a forma, em regime de roulement. Em vez disso, como muitas outras companhias, a CNB preocupou-se a colocar bailados online esquecendo-se que a era do vídeo-dança já se esgotou há duas décadas, e que mesmo que atinja umas 500 “visualizações” não significa que 5 indivíduos tenham chegado ao fim das respectivas peças. Uma medida de puro marketing para atrair quem não quer ver a companhia ao vivo ? Adiante.
Qualquer pessoa que esteja minimamente atenta às instituições culturais que o Estado financia – e nem precisa conhecer em profundidade o tecido artístico nacional, e especificamente o da Dança Portuguesa – não pode deixar de reflectir e questionar a própria existência da CNB e a gestão do Teatro Camões. Espaço em que o Ministério da Cultura há anos decidiu abrir uma espécie de “casa da dança”, transferindo a Arte de Terpsícore do Chiado (eixo dos teatros São Carlos, S. Luiz e Trindade) para um “caixote azul” para os lados de Moscavide, em cima do rio Tejo plantado. Escrutinar o trabalho de todos os seus elementos – os bailarinos quer dancem quer façam crochet ganham o mesmo no fim do mês – é um dever de quem paga uma companhia que vive dos impostos dos Portugueses e (um pouco) dos chorudos lucros da EDP, e cujo trabalho muito poucos Portugueses, realmente conhecem.
Se a passagem de Paulo Ribeiro pela CNB só fez aumentar o “caos” em que o grupo já se encontrava – e por tal o ex-ministro da Cultura, Castro Mendes, deve aos Portugueses um pedido de desculpas por ter permitido ao seu secretário de estado e assessores terem escandalosamente gerido a Direcção-Geral das Artes e feito uma série de nomeações perfeitamente inusitadas – as coisas têm vindo a piorar o débil e preocupante estado dos corpos artístico e técnico da companhia.
Actualmente, a CNB tem listados nove bailarinos principais e só dois dançam regularmente e, quase sempre, fora da companhia. O número de solistas é cinco e nenhum é presença constante nos espectáculos. Meio solistas são 14 e corpo de baile 32. E é desta última categoria que saem muitos dos que interpretam papéis principais nos bailados clássicos. Com esta incongruência não só as remunerações são injustas como não há melhor fórmula para o clima laboral ir ficando cada vez mais envenenado. Só tal não percebe quem nunca entrou pela porta dos artistas de uma companhia de dança!
ESTAMOS A CAMINHAR COMO SONÂMBULOS EM DIRECÇÃO À CATÁSTROFE
EDGAR MORIN
Lembrarei, a título de exemplo, um editorial na Revista da Dança intitulado “A (escandalosa) obesidade da CNB” de Novembro de 2012 – http://www.revistadadanca.com/?p=1034 – que, infelizmente, continua mais actual que nunca. O drama já vem de longe e nada de positivo acontece!
Depois de Armando Jorge, o seu primeiro director artístico de renome, parece não ter havido um único com um pensamento estruturado e com uma noção de serviço público e uma visão de fundo para a companhia. E todos eles, jamais, antes de serem nomeados terão escrito uma única linha sobre o que pensavam da CNB ou informaram, publicamente, ao que vinham. E os resultados têm sido o espelho de uma sucessão de más escolhas, aos mais diversos níveis, incluindo, para cargos directivos, indivíduos que nem faziam uma pálida ideia de como funcionava uma estrutura artística daquelas dimensões.
Numa altura em que a situação da CNB é particularmente problemática o Ministério da Cultura e o OPART (organismo sedeado no São Carlos que gere a CNB) devem, em nome da Cultura Portuguesa, tomar uma atitude. E sem hesitações pois trata-se de uma companhia “de bandeira” que deve representar uma parte substancial da dança portuguesa e, para isso, é justamente alimentada por todos os Portugueses.
Está na hora dos governantes – que pouco ou nada conhecem da profissão e são mal assessorados por pessoas que sabem tanto ou menos que eles – ouvirem quem tem conhecimentos, ideias e projectos para reverter uma situação que traz incómodo a muitos e prejuízo a muitos mais.
A curto prazo, a melhor solução para salvar a CNB deste período negro que se arrasta há anos, seria, desde logo, mudar o esquema directivo, para um sistema (à americana) com um director artístico assessorado por uma comissão com um número ímpar de elementos – dividindo entre si as responsabilidades da programação. E, de seguida, fazer convites a artistas com provas dadas no país para apresentarem programas de trabalho exequíveis e que tivessem em conta a necessária e urgente restruturação dos quadros artísticos e técnicos, bem como um reportório de superlativa qualidade, notoriedade e abrangência. E, naturalmente, que faça jus a uma estrutura de características verdadeiramente nacionais, abandonando-se definitivamente este clima de uma certa “rejeição” da parte do público que, quantas vezes ainda vai ao engano, na esperança de ver um ou outro bailado clássico tradicional com alguma qualidade e um pouco de magia! Coisa que raramente acontece pois, à força de modernizar obras-primas do património mundial, tem-se abastardado de tal maneira certos clássicos, que viraram uma caricatura deles próprios. Para além de se verificar na CNB uma enorme dispersão de meios com a proliferação de “projectos” e “projectinhos” completamente incongruentes e nos quais uma companhia profissional, séria e respeitável não se devia perder. Ela existe para fazer trabalho de qualidade e se focar naquilo que uma companhia de dança deve saber fazer bem: dançar! E deixar uma marca na História – numa História que se deve repetir – através de um reportório nacional alicerçado, em simultâneo, nas várias tradições e em obras nacionais contemporâneas.
Se a temporada 19-20 foi o descalabro que foi, retomar os trabalhos da CNB para marcar o seu epílogo com o popularucho Festival ao Largo – como a direcção terá proposto ao OPART e este à Ministra da Cultura – parece mais outro tiro no pé. Há anos que os bailarinos não dançam obras de reportório no prestigiante palco no São Carlos (ou fica a actuar na rua ou, como se isso já não fosse suficientemente mau, neste Carnaval fez-se um baile de máscaras à antiga em que as bailarinas serviam para entreter os “dandies” do Chiado) e a ideia peregrina de pôr gente aos magotes – o festival é gratuito e muita gente fica de pé, leva assentos ou senta-se no chão – num espaço exíguo em frente ao teatro, em que o palco ocupa quase tanto espaço como as cadeiras (exclusivas para convidados) é mais outro convite para o vírus Corona dançar com os artistas e, sobretudo, com os espectadores.
Há, pois, que parar esta estranha atracção da CNB pelo abismo. E demonstrar atenção, respeito e carinho por todos quantos – com seriedade e empenho – ainda levam para a frente um barco em águas turvas e turbulentas, já que, sem directores, gestores, programadores, produtores, críticos e ministros, os teatros sempre funcionarão mas, sem bailarinos seguramente que não há Dança!
António Laginha
Antigo bailarino do Ballet Gulbenkian e da Companhia Nacional de Bailado
Fundador e director da Revista da Dança
Doutorado em Estudos Artísticos pela Universidade de Coimbra
fotos: do Arquivo da CNB