Após vários anos de cíclicas passagens por hospitais, o multifacetado e conhecido artista Carlos Mendonça faleceu, na manhã do dia 6 de Setembro no Hospital Egas Moniz, em Lisboa, vitimado por um cancro pulmonar.
Apesar de debilitado pela doença, continuou sempre a trabalhar – e a demonstrar uma energia, criatividade e entusiasmo ímpares – tendo assinado os figurinos da marcha de Alfama que, em 12 de Junho passado, venceu a 84ª edição do certame. Aliás, foram as marchas de Lisboa que o projectaram para a fama já que, na qualidade de figurinista, cenógrafo, ensaiador e, mesmo, letrista e compositor, não só renovou o conceito daquele tipo de manifestação coreográfica, mas também conseguiu que ela se tornasse cada vez mais “artística” e até tenha adquirido mais popularidade.
Em 2015 lançou, no Cinema S. Jorge em Lisboa, o livro “As minhas Marchas” em que mencionava os muitos prémios, ganhos ao longo de mais um quarto de século, com a marcha de Alfama – e também com a do Alto Pina, num curto interregno em que esteve à frente da sua organização – bem como os figurinos e adereços que desenhou e desenvolveu.
José Carlos dos Santos Mendonça, nasceu no bairro do Alto Pina, a 28 de Janeiro de 1939, estudou na Escola Comercial Veiga Beirão, tendo começado por fazer parte do seu grupo de teatro, dirigido pelo conhecido actor Manuel Lereno. Posteriormente passou para o grupo de teatro da Mocidade Portuguesa, sob a direcção de António Manuel Couto Viana. Foi um artista versátil que tendo começado pelo teatro entrou depois (casualmente) na dança. Aos 11 anos já participava em sessões infantis radiofónicas na Emissora Nacional, tendo, posteriormente, prosseguido os estudos teatrais no Conservatório Nacional. Aos 16 anos começou a estudar dança clássica com a professora alemã Ruth Asvin, tendo feito formação complementar em Paris (nos Estúdios Vaquer) e em Bruxelas, com Jaques van de Veld. Mais tarde estudou em Londres com Audrey de Voss.
Na Primavera de 1958 entrou para os Ballets de Lisboa, sob a direcção de Fernando Lima e Águeda Sena, tendo dançado quase todas as coreografias do grupo creditadas aos dois criadores. E até algumas que não chegaram a ser apresentadas em cena. No ano seguinte, passou para o Grupo de Bailados Portugueses de Fernando Lima, um pequeno agrupamento de dança mais virado para a vertente folclórica. O mesmo exibiu-se durante uma temporada no Casino Estoril, tendo seguido em digressão, mais de um ano por estrada, por vários países da Europa, nomeadamente França, Suíça, Bélgica, Jugoslávia, Alemanha, Holanda, Dinamarca e Suécia. Dele faziam parte quatro bailarinos, Fernando Lima (director e coreógrafo), Fernando Isasca, Fernando Rodrigues e o próprio Carlos Mendonça e outras tantas bailarinas, as inglesas, Paula Gareya, Roberta Burderyon e Jean Johnston e a portuguesa Bernardette Pessanha.
Carlos Mendonça também participou em alguns filmes, designadamente em “O Cantor e a Bailarina”, realizado por Armando Miranda, em 1960, ao lado de Jorge Salavisa, Fernando Isasca, Albino Morais, Bernardette Pessanha e Fernando Lima, sendo a coreografia assinada por este último. Nesse mesmo ano foi convidado por Lima para dançar na peça musical “A tia de Charley” (Where’s Charley?), uma produção de Vasco Morgado para o Teatro Monumental, tendo como actor principal Raul Solnado. Integrou também o elenco da opereta “Campinos, mulheres e fados”, que se apresentou no Teatro Capitólio e, no final de 1961, foi chamado para o Grupo Experimental de Ballet (GEB) – que havia de se chamar sucessivamente Grupo Gulbenkian de Bailado e Ballet Gulbenkian – para participar no segundo acto do clássico natalício, “O quebra-nozes”, substituindo Carlos Caldas e Jorge Trincheiras, que tinham deixado (temporariamente) o grupo. Depois de exibida no Teatro Monumental a obra foi filmada no ano seguinte pela RTP. Fez ainda parte do elenco de uma obra de Norman Dixon, coreografada para o GEB, “Suite Romântica”.
Dançou alguns espectáculos, como artista convidado, ao lado de Luna Andermatt e com Mafalda Lencastre, Mendonça participou numa série de programas televisivos, da autoria do crítico Tomaz Ribas, intitulada “A Dança Através dos Tempos”. Tratava-se de um conjunto de programas temáticos, filmado nos estúdios do Lumiar, em que Ribas falava de danças tradicionais europeias, ilustradas por alguns intérpretes em actividade na época.
Quando o American Ballet Theatre se deslocou a Lisboa, no ano de 63, a companhia norte-americana precisou de reforços para o bailado de Mikhail Fokine, “Barba Azul” (1941), e, por tal, contratou Isabel Ruth, João d’Ávila e Carlos Mendonça, ex-bailarinos dos Ballets de Lisboa. Este último seria convidado para prosseguir com o ABT em digressão. Porém, não pôde aceitar por já se encontrar a cumprir o serviço militar obrigatório. Segundo palavras suas, teve um desgosto tão grande que o fez “chorar durante uma semana”. Antes de partir para a Guiné, para a chamada guerra colonial, acompanhado da sua jovem esposa de nacionalidade inglesa, já preso aos deveres militares foi aperfeiçoando a sua técnica com as bailarinas Anna Mascolo e Isabel Santa Rosa. Em África desenhou os figurinos do dueto “A péri” (coreografia de Carlos Trincheiras, música de Paul Dukas e cenografia de D’Assumpção) estreado em 24 de Maio de 1963, em Guimarães, integrado no VII Festival Gulbenkian de Música. Esses foram os primeiros dos muitos figurinos que desenharia ao longo da sua vida e, segundo o próprio, “seguramente os primeiros a serem pagos”. De regresso a Portugal, por falta de oportunidades, abandonaria a dança, tendo seguido a profissão de comissário de bordo na companhia Air France. Em 1964 estabeleceu-se em Londres, onde estudou design de cena no Ealing College of Art e começou a trabalhar como assistente do figurinista Michael Robbie e, mais tarde, de Evangeline Harrison. Foi no Reino Unido que nasceram os seus quatro filhos (Sarah, Carla, Jorge e Jason). Na qualidade de figurinista trabalhou muitos anos para a BBC, a Granada Television, os Euston Films e a Paramount Films.
Regressado definitivamente a Portugal, em 1980, começou por fazer figurinos para diversos programas de televisão, cinema (Fátima, The miracle /HBO), musicais e novelas da NBP, tendo também escrito e produzido alguns espectáculos musicais, designadamente revistas à portuguesa. Desenhou cenografia e figurinos para os teatros de revista ABC, Variedades e Maria Vitória, figurinos para a peça “Jus’Like That” – estreada no Festival de Edimburgo em 2010 – e a cenografia de “Rapazes nus a cantar”, para o Teatro do Casino Estoril em 2009.
Casualmente começou a colaborar com a marcha do Bairro Alto, a pedido de um ex-colega do GEB, Albino Morais. Em 1990, a convite do bairro de Alfama, desenvolveu um trabalho ímpar durante duas décadas, como coreógrafo, figurinista e cenógrafo e também como compositor de marchas. Conhecido por ter um estilo inovador, que inspirou muitos outros ensaiadores, conseguiu 13 primeiros prémios para Alfama (e alguns para o Alto Pina) bem como diversos prémios para figurinos e coreografia.
Alguém da imprensa – achando que lhe estava a fazer o maior dos elogios – chamou a Carlos Mendonça, o ‘Mourinho’ das Marchas de Lisboa. Porém, essa ligação ao futebol não era nada do seu agrado e o artista, com o seu aguçado sentido de humor, chegou mesmo a referir em público que o mundialmente famoso e controverso treinador é que poderia ser “o Mendonça do futebol”.
Tal observação não seria de estranhar, uma vez que sempre se sentiu mais artista da dança (bailarino e coreógrafo) e figurinista, que estratega. Era também conhecido pela sua enorme generosidade, bem como pela mágoa por, apesar da sua muita experiência – desenhou os supra mencionados figurinos para o primeiro bailado de um português, Carlos Trincheiras, para o Grupo Experimental de Ballet – e determinação, nunca ter assinado figurinos e, mesmo, a cenografia para uma obra de reportório, numa grande companhia portuguesa de dança, designadamente o Ballet Gulbenkian ou a Companhia Nacional de Bailado. Na primeira, Madalena Perdigão não terá permitido que ele permanecesse no grupo por “muitas vezes ganhar a vida a fazer revista” e, na segunda, apesar das suas tentativas, os sucessivos directores “desvalorizaram” o seu trabalho por estar ligado a uma forma de “arte popular”, como são as marchas de Lisboa.
O inegável contributo do artista para a valorização das marchas e o impulso que lhe deu, para além de incentivo para as novas gerações, justificou a Medalha de Mérito Municipal – Grau Ouro – da cidade de Lisboa, condecoração recebida em 12 de Junho, de 2014, na Avenida da Liberdade.
Assim, para quem acredita na vida para além da morte, que sigam as marchas todos os anos na Avenida (da Liberdade) pois, com Carlos Mendonça, vai ser uma alegria na liberdade do céu.
António Laginha